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Psicoterapia: por uma Estratégia
de Integralidade

Ana Cleide Guedes Moreira(1)

Resumo

São notórias as diferenças entre a Psicologia e a Medicina, presentes na literatura psicológica de nosso tempo. O esforço da Psicologia em fazer a crítica da Medicina, conhecido de todos, em nosso campo, merece análise e faremos isso tendo como fio condutor uma demanda cultural, nomeada integralidade pelo campo da saúde coletiva. Expressão conceitual muito brasileira, fruto da interseção entre movimentos sociais e o sistema científico, um exemplo único em sua categoria, a integralidade foi institucionalizada na Constituição de 1988, incorporada aos princípios do Sistema Único de Saúde, o SUS. Ao lado da equidade e da universalidade, a Atenção Integral à Saúde foi resultado do compromisso entre a ciência brasileira e as demandas sociais, compondo uma exigência que passa a nortear legalmente todo o sistema de saúde do país, seja o público, seja a saúde complementar. Historicamente conduzido por vasto leque de profissões — desde médicos, mas incorporando em seu movimento histórico administradores, educadores, assistentes sociais, farmacêuticos, biólogos, enfermeiros e, entre muitos outros, também psicólogos — e articulado a comunidades de base, associações de moradores, igreja da Teologia da Libertação, pastorais da saúde, partidos políticos, sindicatos e centrais sindicais do campo popular e democrático, OAB e diversas corporações profissionais, no interior do campo largo das Reformas Sanitária e Psiquiátrica, o grande movimento social pela saúde permanece um dos mais atuantes, ainda hoje, na realidade brasileira. Examinar em que medida as críticas produzidas pela pesquisa psicológica a propósito do discurso médico, da relação médico-paciente resultaram, em nosso campo, na psicoterapia institucional, na psicologia e psicoterapia comunitária, na introdução de práticas de grupo nas instituições de saúde, em novos dispositivos clínicos, em avanços no tratamento e na prevenção psicológica não cabe nos objetivos deste trabalho, sendo tema largamente conhecido e publicado. Este trabalho está centrado no objetivo de contribuir para o planejamento de estratégias políticas de construção de parcerias e enfrentamento dos conflitos nas relações com os demais grupos profissionais pela Psicologia brasileira.

1. Psicóloga, mestra e doutora em Psicologia Clínica pela PUC-SP, coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFPA, diretora do Laboratório de Psicanálise e Psicopatologia Fundamental e pesquisadora do Hospital Universitário João de Barros Barreto, da UFPA.

Palavras-chave: psicologia, psicoterapia, práticas clínicas, integralidade, estratégias.

Introdução

Devo partir da premissa que antecede toda discussão sobre a Psicologia e funda a concepção aqui apresentada, a de que se trata de uma produção da cultura ocidental. Como produto da cultura é social e histórica, o que resulta em ser também produtora de cultura, amálgama dinâmico em nascente. Isto posto, situar os contextos em que se dão os conflitos e as possibilidades de parcerias é tarefa que tem uma direção clara: deve situar-se em relação às classes sociais, em um eixo histórico, onde seja possível uma reflexão epistemológica e ética que dê conta da Psicologia em sua emergência e suas perspectivas.

Nesse cenário proponho como conceito o de integralidade, tal como postulado pela saúde coletiva, com quem a Psicologia vem estabelecendo sólido diálogo, como hipótese interpretativa para analisar nosso campo. Ou seja, nós psicólogos estamos a certa distância de adotar a noção de que o ser humano necessita de atenção integral para a sua saúde, e só com muita resistência avançamos no sentido de garantir na formação do psicólogo essa perspectiva.

Tudo se passa como se a Psicologia, como ciência, de certa forma engessasse a profissão que avança mais rápido, na direção de práticas sociais que são demandadas pela sociedade brasileira, no bojo do crescimento dos movimentos populares pós-abertura democrática, ou seja, desde a década de 80. As pesquisas publicadas pelo Sistema Conselhos e pelo sistema científico brasileiro nas duas últimas décadas dão conta de que as práticas clínicas são objeto de trabalho da maioria dos psicólogos neste país, enquanto as pesquisas e publicações, encarregadas eticamente de rastrear os fundamentos teórico-metodológicos que podem sustentá-las, muitas vezes acabam por realizar um movimento na direção contrária, como se a Psicologia fosse uma ciência que nada tem a ver com a saúde da população e com suas urgências.

Essa última afirmação necessita de demonstração. Serei breve quanto possível. Refiro-me às críticas dirigidas à Psicanálise, mas também as demais psicoterapias que utilizam o método clínico para pesquisa e intervenção – sejam o psicodrama, a Gestalt-Terapia, a terapia centrada na pessoa, terapias corporais e várias outras psicoterapias —, de adotar caráter elitista, atendendo apenas a população média e média alta que pode pagar o profissional liberal pela oferta de práticas clínicas psicológicas. Esse desserviço ao ânimo daqueles que dedicaram anos para formação e desenvolvimento de pesquisas clínicas
válidas e eficazes, cujo direito ao panteão cientifico só a muito custo vem sendo conquistado, acabou por retardar no campo mesmo da Psicologia a oferta daquilo que as classes populares reivindicam – me refiro a ser tomadas em consideração em suas subjetividades e seu sofrimento psíquico –, traduzida conceitualmente no bojo da noção de atenção integral à saúde, expressão conceitual construída em oposição ao discurso médico e ao modelo hospitalocêntrico dominante, cujas origens históricas todos conhecem.

Concordamos com Tourinho (2008) quanto às três dimensões da Psicologia atualmente existentes, a saber: a dimensão reflexiva, que implica uma Filosofia da Psicologia; a dimensão investigativa, no interior da qual, parâmetros de cientificidade são balizadores da atividade e, por fim, a prática como profissão de ajuda. Esse modelo interpretativo para a Psicologia nos parece útil para pensar os problemas de nosso campo, no sentido de construir um cenário amplo para o debate, ou seja, uma moldura em que o delineamento do campo não seja uma justaposição de conceitos e teorias. Propomos então uma hipótese interpretativa para este estudo, a saber, a dimensão da integralidade, que, pensada como ideal, objetivo ou meta, pode revelar-se um conceito estratégico, senão vejamos.

Fazendo ranger o engenho, não seja ele mais do que um aparelho para pensar, o conceito de integralidade permite uma primeira interpretação: a Psicologia é multifacetada, diversa em seu objeto de pesquisa, variada em seus métodos de produção de conhecimento, ampla em sua aplicação, nem sempre pautada no modelo científico que lhe dá origem ou a sustenta e valida, o que faz dela um campo de ausência de integralidade ou onde a integralidade brilha por sua ausência. Cada psicólogo faz suas intervenções muito distante desse ideal de estar diante do cidadão que o procura instrumentalizado com as diferentes teorias e técnicas psicológicas, as teorias de desenvolvimento, as psicopatologias, mas também com as considerações socio-históricas que poderiam ampliar seu campo de avaliação do outro, alargar sua escuta do interditado (FIGUEIREDO, 1996) que naquele discurso pede linguagem, descortinar sua visão para a integralidade do atendimento que deve prestar quando demandado. Em nossa profissão, todo esse conjunto de teorias técnicas é apenas parcialmente operativo para dar a dimensão integral da intervenção psicológica, não por sua inconsistência, como se pode nomear a partir de quaisquer das epistemologias disponíveis, mas por lhe faltar a dimensão ético-política do compromisso entre a ciência e a cultura, ambas produtos e produtoras de transformações socio-históricas.

Se, nos EUA, como se sabe, a Psicologia não logrou alcançar a exclusividade no campo da psicoterapia, ironicamente, pode-se notar que a reivindicação de exclusividade, que certo número de psicólogos ainda sustenta no Brasil, paira no ar sem fundamentos teórico-metodológicos ou exemplos históricos, além da pretensiosa proposta de reserva de mercado, em que estão ausentes argumentos sólidos que convençam que, tendo conquistado o campo às expensas da Medicina, que cedeu-lhe espaço cultural e mercado, permita reunir forças para excluir do campo as demais profissões de ajuda que vêm emergindo a partir de demandas culturais.

O psicólogo brasileiro vem desenvolvendo novas práticas, ditas emergentes, que certamente constituem desafios para a formação e a profunda e ampla investigação realizada pelos diversos autores que pesquisaram a temática, dá conta que a expansão do campo da clínica vem no bojo da consideração pelo contexto social e pela participação dos psicólogos que dão andamento a vários tipos de ação militante voltados para as resoluções das questões político-sociais, levantadas pelas questões irredutíveis, por sua vez emergentes das demandas sociais por melhores condições de vida das populações de baixa renda (CFP, 1994, p.12-13; FERREIRA NETO, 2004). Se as pesquisas de 1988, 1992 e 1995, viabilizadas pelo Sistema Conselhos, não puderam deixar de reconhecer a importância, atribuída pela própria categoria, da formação para práticas clínicas – que a maioria dos estudantes traz consigo quando entra nas universidades e faculdades públicas e privadas, que continuam em crescimento no País –, hoje a montagem de estratégias para a problemática é urgência irredutível e inadiável.

As referências à morte da clínica no contexto francês (CECCARELLI, 2008) dão conta da tendência psiquiátrica europeia de abandonar o campo das práticas que levam em conta a subjetividade e o sofrimento psíquico, pelo recurso aos psicotrópicos e à nosologia fixada pelos DSMs, conduzindo “à abolição da palavra, dimensão irredutível da clínica” (p. 19). Mas isso vem de par com a progressiva extinção dos psiquiatras em solo norte-americano, dando lugar à extensão das intervenções psicológicas autorizadas a abranger o campo da prescrição medicamentosa, já consolidada nas forças armadas norte-americanas (TOURINHO ET AL.. 2004). Em conclusão, proponho que o exemplo francês não difere do norte-americano, no sentido da morte da clínica psiquiátrica em ambos, o que talvez seja verdadeiro também para o nosso país, no que já há fortes indícios nas universidades, onde a tendência dos estudantes a escolher a psiquiatria só tem decrescido. Isso não é pouco e deve nos fazer refletir.

Mas, a nosso ver, ao contrário de atribuir as mudanças da prática médica principalmente a fatores de ordem epistemológica, mesmo a produzida pelo campo psicológico, como gostariam possivelmente seus autores, o exemplo histórico dos EUA, está sendo fomentada pelos seguros-saúde, sempre ávidos pela redução de custos. A simplificação e padronização dos procedimentos, como mostram Neno e Tourinho (2004), permitiram, naquele país, abrir o campo das psicoterapias também para os assistentes sociais, enfermeiros e outros.

O que não parece ser muito diferente do que pode estar ocorrendo em outros países. Segundo Hanns (2004), não apenas na maioria dos estados norte-americanos, mas também na Alemanha, na Inglaterra, na Holanda, a prática da psicoterapia, embora seja geralmente ocupada por psicólogos e psiquiatras, também é franqueada a outros profissionais que há muito a vêm exercendo e desenvolvendo suas próprias abordagens teóricas, como assistentes sociais, pedagogos, psicanalistas de formação leiga e outros. (p. 9).

Trata-se da questão da terceirização de serviços, colocada modernamente. Por exemplo, os escritórios de advocacia, hoje, onde os jovens advogados são “associados”, não tendo salário, nem férias ou 13º, ou seja, não têm os direitos trabalhistas nem a participação nos lucros, então, rigorosamente, apenas vendem sua força de trabalho. A precarização do trabalho e do emprego, fonte de sofrimento psíquico para os trabalhadores nesta era de globalização (DEJOURS, 2001) e a institucionalização dos seguros-saúde, mas também das cooperativas e empresas de prestação de serviços, caso dos fisioterapeutas e dos professores de Educação Física, mas também de pedagogos, não passam de novas formas de extração da mais-valia. É nesse sentido que o capitalismo mundial integrado (GUATARRI, 1982) não tem recuado em ampliar o campo da psicoterapia para os demais profissionais, não psicólogos, cujos serviços são menos valorizados e mais baratos se tornam para as empresas de seguros, ainda que não para os segurados. Aqui sugerimos que estudos de Sociologia das Profissões e de Economia Política constituem um avanço interdisciplinar necessário em nosso campo e uma tática necessária na construção da estratégia preconizada.

Identificar interesses comuns é uma primeira condição para construir parcerias produtivas, inclusive com outras disciplinas cientificas fora do campo das ciências humanas e sociais, mas também no campo da Saúde, da Educação e mesmo das chamadas hard sciences. É uma tarefa a ser assumida. Para nós, eis uma tarefa que deveria ser assumida pela Psicologia brasileira, o que já vem sendo feito, sem dúvida alguma, em diversas práticas emergentes, que avançam mais rápido que a reflexão epistêmica e os saberes derivados de pesquisas sistemáticas.

Nessa direção, propomos, como primeira tática, a identificação de interesses comuns, seguida pela tentativa de construção de análises teóricas e a formulação, quando possível, de novos conceitos para aumentar o diálogo entre as diversas escolas da Psicologia. Esta última, que considero uma tática já em andamento, com a comissão ad hoc de psicoterapia, deve ser desenvolvida não apenas entre aqueles que nomeadamente praticam a psicoterapia, mas todas aquelas psicologias que desenvolvem práticas clínicas. Isso porque a psicoterapia não é uma prerrogativa reivindicada nem mesmo entre algumas tendências escolásticas na área. Como exemplo, cito algumas abordagens entre as lacanianas, da Psicologia Social da Saúde, no aconselhamento psicológico e na Psicopedagogia (que já foi prerrogativa do psicólogo na primeira regulamentação de nossa profissão).

Essa proposta tática deve se desenvolver no interior de uma estratégia capaz de promover a integralidade dentro do próprio campo de nossa disciplina, que lhe é ausente, às custas do não atendimento das demandas culturais a ela dirigidas e do enfraquecimento das lutas e conquistas da categoria. Claro está que algumas entre as psicologias estão encasteladas em guetos acadêmicos e em associações de pares e que a articulação aqui preconizada, até que se forme uma grande rede de “profissionais de práticas clínicas”, só pode se dar no enfrentamento das resistências no sentido psicanalítico do termo, ambas abordáveis por uma postura ético-politica comprometida socialmente, que tome os diferentes modos de subjetivação narcisistas de cada segmento como nada mais do que pequenas diferenças, diante da missão maior da Psicologia.

A propósito da crescente produção de conhecimento da Psicologia brasileira, no que afirmamos que Serra está equivocada quando afirma que há “baixa produção científica e (...) falta de divulgação ou divulgação falha e ineficiente do conhecimentos existentes na área” (p. 27), vale a pena citar Tourinho (2008), quando afirma que a sistema de pós-graduação em Psicologia no Brasil está construído sobre uma base de produção de conhecimento diversificada internamente e diferenciada de outras áreas de conhecimento, ainda que suas funções primárias sejam a geração de conhecimento novo e a formação de quadros competentes para essa produção e para a inovação tecnológica e que os modelos de aferição dessa produtividade sejam fundamentados e compatíveis com um tipo de base de produção de conhecimento encontrado principalmente nas chamadas hard sciences. Para esse autor, o cenário em que cresce a pesquisa em Psicologia é tal que “objetivos extensionistas, prestação de serviços, formação de quadros profissionais e contribuição para formulação e efetivação de políticas públicas estão presentes e acabam por implicar funções e encargos adicionais” (TOURINHO, 2008, p. 362). Isso significa dizer que aos pesquisadores se apresentam como necessárias “a interação com dinâmicas institucionais não acadêmicas, desafios metodológicos originais, realizações as mais diversificadas e um volume possivelmente maior de trabalho”.

Suas considerações o levam à conclusão de que esse cenário implica que a avaliação da pós-graduação em Psicologia precisa avançar no sentido de “agregar uma aferição mais elaborada de seu impacto social”. Pensamos que isso corresponde a uma conclusão consistente sobre a própria Psicologia no país. Nesse sentido, proponho considerar que os psicólogos brasileiros ainda precisam, por um lado, reconhecer seu crescimento e suas dificuldades, no sentido de atender às demandas sociais e, por outro lado, admitir que sua capacidade de produzir conhecimento novo, ou seja, novos conceitos e teorias para dar conta dos problemas humanos, precisa ser mais investida. Ao contrário do refúgio em guetos teóricos e escolásticos, cabe aos psicólogos investir em produzir pesquisa e construir programas de pós-graduação, única maneira de construir redes teórico-conceituais consistentes entre diferentes abordagens, assim como laços sociais entre os psicólogos da academia e os da profissão, que entre si diferem mais pelo narcisismo das pequenas diferenças (FREUD, 1921) do que por sua irredutível e mesma condição humana, no contexto de um país e um continente que resiste aos diferentes modos de imperialismos,
há mais de quinhentos anos.

Qualquer breve levantamento das revistas de psicologia clínica e psicoterapia nas bases de dados indexadas pode dar conta que, sob os três eixos epistemológicos predominantes, sejam as teorias explicativas, as análises interpretativas, sejam as teorias compreensivas, de qualquer ângulo que se aborde a Psicologia das práticas clínicas no Brasil, sempre se estará diante de uma produção crescente, tanto na pesquisa quanto na busca de formação profissional, o que já resulta que, dos cem mil psicólogos estimados em nosso país, 80% declaram realizar psicologia clínica e psicoterapia.

Considerações Finais

Afinal de contas o que pode nos fazer trabalhar com diferentes profissões de Saúde, de Educação, do mundo do trabalho, da Comunicação se permanecermos alheios à noção de integralidade, no sentido amplo desta? Quem encontrará a razão por que as críticas da Psicologia à Medicina não resultaram na perspectiva da integralidade em nosso campo profissional, não apenas para os psicólogos clínicos? Isso porque talvez os maiores críticos da aproximação com a medicina são justamente os experimentalistas e cognitivistas, que não produziram nada de mais útil no lugar do método clínico de abordagem dos usuários para quem a Psicologia dirige seu trabalho.

E tome-se em consideração que esta argumentação não se dirige só às práticas clínicas, mas ao próprio campo da Psicologia como ciência e profissão. Não são poucos os contextos e cenários que compartilhamos com outros profissionais: na escola é talvez onde esse campo é mais fértil, ou desconhecemos que os professores do ensino fundamental, médio e superior, em que atuamos, são de todas as mais diversas disciplinas científicas (Matemática, Física, Química, línguas, Filosofia, etc.). Ou não precisamos formular novos conceitos para dar conta dos problemas colocados pelas escolas hoje? Se vamos produzir conhecimento baseado em resultados de experimentos controlados ou se construímos nosso saber com base na transformação da vivência clínica em experiência e saber, não é isso o que importa. Sustentamos que os estudos epistemológicos na/da Psicologia precisam levar em consideração que precisamos superar o problema europeu da Razão e de sua idealizada pureza (BERLINCK, 1996), que resultou no higienismo, no nazismo e, em tantas outras formas de dominação e docilização das massas.

Novamente, é a marcha da história próxima que pode iluminar, por semelhanças e diferenças, nosso próprio caminho, senão vejamos: o campo abrangido pelos Conselhos de Engenharia, os Creas, onde encontra abrigo a multiprofissionalidade solidamente assentada na interdisciplinaridade científica, tem muito a nos ensinar, mantendo um conselho federal e um sistema conselhos composto por engenheiros de todas as especialidades, arquitetos, agrônomos, geólogos e mais centenas de profissões médias e superiores da área tecnológica, como Agrimensura, Meteorologia e Geografia. E não vale como argumento que esse modo de organização foi produto da era Vargas, nos anos 30, pois sua perenidade de imediato o invalida ou desaconselha.

E, finalmente, no problema que nos ocupa, a psicoterapia enquanto uma prática clínica de ajuda ao sofrente que a solicita, como podemos ficar surdos à necessidade de formular conceitos que nos permitam a comunicação com médicos, enfermeiros, técnicos, assistentes sociais, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, farmacêuticos, psicofarmacólogos, neurocientistas e todo um grande número de profissionais que atuam na área da saúde, inclusive engenheiros, físicos, administradores, gestores de variada formação, mas também serventes, porteiros, agentes de seguros, na grande complexidade que é a área hoje? É levando em consideração a noção de integralidade na atenção à saúde que podemos admitir que nosso campo comum exige novas pesquisas e, fundamentalmente, disposição para inventar novos dispositivos de solicitude, como bem denomina psicoterapia nossa colega Elza Dutra, neste volume.

Nesse mesmo sentido, reconhecendo a existência de “mais de quinhentas psicoterapias” já catalogadas por pesquisadores e, embora entre essas se possam identificar “cerca de vinte abordagens dominantes” (HANNS, p. 6) o campo ainda é inegavelmente amplo, de modo que nenhuma abordagem atualmente dá conta de sua complexidade (p.11).

Concordamos com Serra, em artigo publicado na Revista Diálogos sobre o tema, quando supõe justificada a expectativa de que a psicoterapia irá emergir como disciplina científica e profissional na integração crescente entre saúde psicológica e física nos sistemas públicos e privados de saúde e, eventualmente, equiparar-se ao tratamento médico em termos de financiamento pelo sistema público de Saúde, mas de modo a que se respeitem as especificidades do atendimento psicoterápico e se assegure a viabilidade de seu exercício por psicólogos.

Se isso é viável, a história demonstrará. Por ora é válido supor que isso só se dará a partir da Psicologia isto é, no interior do campo de produção de conhecimento desta disciplina e no exercício da profissão, já social e cientificamente validada. Mas, para esse resultado, propomos um lugar definido para a construção de uma estratégia de integralidade: o calor, ora aconchegante, ora infernal, da interseção entre o sistema de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia no Brasil e o Sistema Conselhos, junto com as nossas entidades nacionais e suas articulações internacionais.

Referências
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CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Psicólogo brasileiro: construção de novos espaços. Campinas: Ed. Átomo, 1992.
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CECCARELLI, P. R. A morte da clínica? In: Revista Latino-Americana de Psicopatologia
Fundamental. v. XI, n. 1,15-20, 2008.
DEJOURS, C. A banalização da injustiça social. Rio de Janeiro: FGV, 2001.
FERREIRA NETO, J. L. A formação do psicólogo: clinica, social e mercado. São Paulo: Escuta. 2004
FIGUEIREDO, L. C. Revisitando as Psicologias: da epistemologia à ética das práticas
e discursos psicológicos: São Paulo: Educ. Petrópolis: Vozes, 1996.
FREUD, S. (1921) Psicologia das Massas e Análise do Eu. Obras Psicológicas Completas
de Sigmund Freud, V. IX. Rio de Janeiro: Imago, 1999.
GUATTARI, F. Revolução Molecular: Pulsações Políticas do Desejo, São Paulo: Ed. Brasiliense, 1982.
HANNS, L. Entrevista “Regulamentação em debate”. Revista Ciência e Profissão — Diálogos. Brasília, ano 1, n.1, p. 6-13, abril de 2004.
TOURINHO, E. Editorial. In: Revista Latino-Americana de Psicopatologia Fundamental.
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TOURINHO, NETO; NENO, A Psicologia como campo de conhecimento e como profissão de ajuda. In: Estudos de Psicologia. 9(1), 17-24, 2004.
SERRA, A. M. Caminhos de conciliação. In: Revista Diálogos. N. 1, abr./2004. p. 24-28.