Projeto História e Memória da Psicologia em SP - CRP SP

Entrevista

Entrevista com a profª dra. Maria Margarida Moreira Jorge de Carvalho (Magui) pelo prof. dr. Sérgio Vieira Bettarello, na data de 13 de março de 2001, em seu consultório particular.

Índice:

Origem

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S: Magui, eu queria iniciar essa entrevista dizendo a você que é um prazer e um privilégio estar aqui com você, conversando sobre você. Então, talvez a gente pudesse começar desde o início. Você pudesse nos colocar a par de: quais são suas origens?
M: Me daria mais prazer de estar aqui conversando sobre você! (risos)

S: Mas não vou.
M: As minhas origens? Classe média, São Paulo, cidade de São Paulo. Um pai: comerciante, mamãe: dona de casa. Uma família tranqüila. Filha única e assim eu vivi até o final do ginásio; naquela época chamava-se ginásio (fiz o primário e o ginásio no mesmo colégio).

S: Aquela época... quando foi Magui?
M: ...eu terminei o ginásio em 1947. Eu nasci em 1932 e terminei o ginásio em 1947.

S: Onde é que você estudou?
M: No "Colégio Batista Brasileiro" que ficava perto de casa, eu morava na Rua Dr. Homem de Melo. Embora minha família fosse católica de origem, eles acharam que, por ser um colégio pertinho de casa, um colégio bom, bem conceituado, eu estaria bem lá. Isso já dá uma idéia da abertura de mente dos meus pais.

S: E você é muito estudiosa hoje. Você já era estudiosa naquela época?
M: Não, absolutamente, nem um pouco, nada, nada!

S: É?!
M: Eu me incluo aí na menina normal de classe média brasileira; uma menina que pensava muito mais em festas, em namorados e em vestidos do que em estudos.

S: E quais eram seus hobbies? Você tinha hobby?
M: Tinha... sempre foi a arte. Aliás, não era hobby, era muito mais que isso. Eu dancei balé clássico desde os quatro anos de idade, até os dezoito; eu pintava, fazia cerâmica, pintava porcelana, pintava quadros a óleo. Tinha toda uma atividade minha ligada à música, eu estudava piano, violão,... ligada à arte, um pouco imposta.

S: Isso por influência familiar ou por vocação?
M: O que a família fez: me colocou nas aulas; ela deu o start para as coisas todas. Eu fui colocada pela minha mãe em todas essas aulas. As meninas bem educadas daquela época aprendiam essas coisas. Eu era uma menina bem educadinha. Mas, algumas delas, eu deixei para trás, porque não me interessavam. Por exemplo: tocar piano, violão, eu não gostava porque quando eu começava tocar um pouco melhor eu tinha vontade de levantar e dançar. Eu gostava era mesmo de dançar. Eu gostava de pintar, eu gostava de dançar e de fazer cerâmica. Basicamente, era isso.

S: E você pensou em levar ou a pintura, ou a dança, como profissão, em algum momento?
M: Não,... eu pensava que ia casar, ser dona de casa e ter filhos.

S: Sei, sei.
M: Não tinha nenhuma idéia de profissão. Aliás, não era normal as mocinhas daquele tempo terem idéias sobre profissões, ... minhas primas, minhas amigas um pouco mais velhas do que eu, todas casavam com dezessete, dezoito anos (...)

S: Você era filha única, então? Nem irmão, nem irmã?
M: Era filha única. E, então, a idéia era me formar no ginásio e aí esperar o casamento.

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Estudos e viagem

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S: E aí você se formou no ginásio, mas as coisas correram um pouquinho diferente então?
M: Foi porque nesse momento a minha mãe, que tinha uma origem muito européia, a família dela era uma família ainda muito ligada à Europa. Ela quis me levar para lá, ela achou que era muito importante para completar minha educação (era assim que ela colocava), eu teria de conhecer a Europa. Conhecer os museus, conhecer arte, ir a teatros. Tudo isso não existia praticamente aqui, existia muito pouco aqui no Brasil.

S: Sua família tinha imigrantes, não? ... vocês já estavam radicados no Brasil há muito tempo?
M: Já eram radicados, mas ainda uma influência bastante européia.

S: Mais francesa, talvez? Ou, não? M: Da parte da minha mãe: alemã e francesa. E da parte do meu pai, portugueses. S: Isso quer dizer que você foi visitar a Europa no pós-guerra, então?
M: Exatamente. Foi em 1948 e a guerra tinha terminado em 45 e, ainda havia na Europa muito vestígio de guerra: ainda haviam casas destruídas, racionamento de comida, então, a mente, a cabeça das pessoas ainda era muito marcada pela guerra. Era um momento muito difícil da Europa, esse.

S: Aqui no Brasil você tinha sentido os efeitos da guerra, ou não? Nada? M: Nada, ... S: ...Então pelo que eu entendi você...
M: Para não dizer mentira, eu era menina, e morava na casa de meus avós, eu me lembro uma vez a gente teve de ensaiar blackout. Ensaiar blackout significava pôr umas cortinas pretas, apagar as luzes e ficar no escuro, porque se viesse um bombardeio, a gente tinha de estar no escuro. Eu achava isso interessantíssimo. (riso)

S: Então, pelo que eu entendi, você vivia bastante bem aqui, parece que dada a festas, às artes, uma vida que você diz ser bastante alegre, descompromissada e, de repente, no final da sua adolescência você está na Europa, uma Europa com fome. Como é que foi essa experiência para você.
M: Isso,... Corrigindo um pouquinho, esse bastante bem não era bastante bem rico não, ... era um bastante bem classe média: morava nas Perdizes, num bairro de classe média, assim, eu diria, realmente, uma vida normal de classe média daquela época.

S: Mas... você estava bem? Estava feliz?
M: Eu estava bem, eu estava muito feliz, quando acabei o ginásio, porque eu não queria mais estudar, nunca mais. Então, foi um alívio terminar...

S: Ah, você não queria mais estudar?
M: Eu queria realmente me ver livre da escola, livre de professores, livre de livros e daí para frente me dedicar a alguma outra coisa mais interessante.

S: E como é que foi esse contato seu com a Europa? Você já devia ter ido outras vezes...
M: Não. Eu nunca tinha ido. Foi minha primeira vez.

S: Então como é que foi? Te marcou de algum modo?
M: Pois é..., foi um marco na vida, não foi que me marcou de algum modo. Eu diria que tem minha vida antes dessa viagem e depois dessa viagem. Eu tinha dezesseis para dezessete anos nessa época, e eu fui com a minha mãe, meu pai ficou trabalhando em São Paulo, minha mãe me levou e me deram uma viagem de dois meses. Viajamos por alguns países, fomos para Itália, Suíça, enfim, alguns lugares. E chegamos em Paris. E quando chegamos lá, eu me encantei tanto com a cidade, tanto com Paris, a minha mãe tinha parentes, tinha uns tios, uns primos dela lá, que me introduziram, me apresentaram para pessoas, então eu conheci franceses, me interessei pelo museu, pelo Louvre loucamente. No Louvre eles davam História da Arte, dentro do Louvre, eles ensinavam, e eu quis aprender, fazer esse curso e acabei me envolvendo na vida de Paris, acabei me interessando pelas possibilidades de estudar arte, história da arte e acabei ficando lá por um ano. Minha mãe veio embora e eu fiquei lá. Primeiro fiquei na casa de parentes e depois fiquei na casa de uma amiga, dividindo uma casa, ela era pintora.

S: Uma amiga francesa?
M: Francesa. Que eu conheci lá, conheci nos meus cursos. Ela tinha um quarto para alugar na casa dela e eu fiquei lá morando por um ano. E foi um marco em todos os sentidos. Primeiro, que eu me dei conta, quando cheguei lá, eu falava bem francês (eu tinha aprendido, quando eu era criança, falar inglês e francês, fazia parte da educação das meninas bem educadas), eu sabia falar, não era um problema da fala, ...da comunicação, por causa do idioma mas era um problema que eu não entendia nada do que eles falavam, nada, de verdade, porque eles falavam de coisas que não existiam no meu universo. Eles falavam de músicas que eu nunca tinha ouvido falar, eles falavam de quadros, de pinturas que eu nunca tinha ouvido falar, eles falavam de movimentos sociais que eu nunca tinha ouvido falar... foi a época do Sartre, do existencialismo. Eu nunca tinha ouvido falar de nada disso. Eles falavam da guerra, que eu não conhecia. Eles tinham marcas da guerra muito grandes, eles eram muito cultos e eu chorava todas as noites, quando eu chegava em casa, de vergonha de eu ser eu. Eu me achava, naquele momento, muito burra, muito ignorante, muito superficial, muito inútil. A sensação que eu fiquei de mim, naquele momento, foi terrível, de como é que eu podia ser tão alienada da realidade da vida, da cultura, daqueles movimentos todos, do que foi a guerra para o mundo, então foi muito chocante! Eu passei alguns meses chorando de vergonha de eu ser eu, de vergonha de não saber nada do que eles falavam, até eu saber do que eles estavam falando, até eu conseguir me entrosar, até eu conseguir poder ter uma opinião sobre alguma coisa, até eu conseguir me familiarizar com aquele mundo, de existência da vida, da realidade, da Europa, da cultura deles, em todos os sentido, no sentido antropológico, no sentido de cultura artística, cultura literária, nada eu sabia daquela realidade. Foi muito difícil... e, ao mesmo tempo, foi um ano muito produtivo, muito incrível para mim. Eu voltei uma outra pessoa. Eu fui uma menina, brasileira típica de classe média e voltei uma moça, de 17 anos, levando a vida a sério. E nunca mais eu consegui parar de estudar, até hoje, de estudar e de trabalhar, porque para mim era impossível viver sem estudar e trabalhar, depois dessa experiência.

S: Tudo leva a crer, tudo, se não fosse essa viagem, talvez o seu caminho tivesse sido completamente diferente. Você chegou a trabalhar na Europa?
M: Com certeza. (risos) Não, lá não. Até fiz algumas coisas: ...eu tinha um amigo que pintava lenços (echarpes) à mão para vender e ele me deixava ajudá-lo, para eu ganhar algum dinheirinho também e, então, eu o ajudava pintando os lenços. Enfim, coisas desse tipo. Ajudava um pouco a minha amiga, ... fazer as molduras, junto com os quadros dela. ... Mas, ajudando a eles. O nosso dinheiro valia muito naquela época na Europa, então, o que meu pai mandava era suficiente para poder estudar, comer e viver aquela vida. Realmente, eu não tive a preocupação de ganhar dinheiro e tinha mais a preocupação de estudar, estudar e estudar.

S: Você, a sua mãe voltou e você se dispôs a ficar um ano ou você foi adiando sua volta? E nesse período teve muita vontade de vir embora, e de...? Então, você sofreu mas... enfrentou?
M: Não, eu já me dispus porque o curso que eu vinha fazendo era de um ano. Nenhuma, nenhuma. Eu quis vir embora depois para estudar e para trabalhar.

S: Então, você foi uma existencialista ativa, sentiu na pele. (risos)
M: Ativa. Eu quis vir embora. Porque aí eu quis estudar, quis voltar, eu quis fazer uma faculdade, eu queria trabalhar; eu sou muito brasileira, eu nunca quis morar fora do Brasil. Eu quis voltar e trabalhar aqui. Aqui era minha origem, minhas raízes, o que eu queria fazer tinha de ser aqui.

S: Visto desde uma perspectiva histórica, a gente sabe que o Sartre era uma figura fundamental em Paris. Você chegou a perceber isso na época? Quer dizer, você já tinha uma dimensão do que ele representaria.
M: Cheguei, cheguei a sentar em mesas, inclusive, com ele falando. Eu nunca falei com ele, conheçi-o de vê-lo e de ouví-lo falar. Ele estava lá sentado, falando, colocando as idéias dele e eu fazia parte das pessoas que admiravam e acreditavam. Ah... já sim, muito grande. Meus amigos.... viviam aquela atmosfera, meus amigos eram arquitetos, artistas plásticos, pessoas que eu conheci no curso de arte que eu estava fazendo. Eu estudei decoração, história da arte e arte em geral.

S: Então você estava enveredando por um caminho artístico. Aí você veio ao Brasil e não foi bem isso que você seguiu... foi? Ah, quando você voltou para cá, você...
M: Foi. Eu tentei fazer isso. Como arte era o meu mundo, natural naquele momento, foi para onde eu fui. Foi o que eu fiz lá, foi o que ia fazer aqui. Então eu entrei no que se chamava colegial naquele tempo, que era o segundo grau, eram três anos, entrei no colegial para fazer faculdade de arquitetura porque era a única faculdade ligada à arte naquela época, àquele meu universo de artes plásticas, então eu ia para arquitetura. Aí houve outro acidente de percurso. Eu tive um professor que chamava-se Dante Moreira Leite, que era professor do Mackenzie.

S: Você fez colégio no Mackenzie?
M: Fiz dois anos no Mackenzie e o último ano, no Bandeirantes. E no segundo ano, no Mackenzie, o Dante Moreira Leite dava uma matéria que se chamava filosofia, que eu não conhecia nada, eu nunca tinha estudado filosofia e, comecei, a primeira leitura que ele nos deu foi o Discurso sobre o método, do Descartes. Aí eu fui ler, um livrinho pequenininho mas importantíssimo. Eu fiquei tão fascinada pelo livro, que eu disse: "se eu estudar filosofia, eu vou aprender a pensar". E como eu estava muito interessada em pensar, em me melhorar, em melhorar a qualidade de ser humano que eu era, eu resolvi mudar e fui para filosofia. Esse foi o meu caminho.

S: Então você seguiu, inclusive, Descartes? Que também diz que ele foi estudar filosofia para entender melhor a vida. Foi atrás dele. Você entrou na Universidade de São Paulo?
M: Foi. Eu fui também. (...) fui atrás dele. Hoje eu não diria mais que eu sou uma cartesiana, mas naquele momento, eu fui atrás dessa possibilidade. Eu tive o professor Lívio Teixeira, que era professor de história da filosofia... no primeiro dia de aula ele pediu para que cada um de nós escrevesse porque queria fazer filosofia e eu escrevi que eu queria aprender a pensar. Entrei na Universidade de São Paulo e estudei filosofia, sou formada em filosofia.

S: Não havia psicologia, faculdade. E como foi para as pessoas que te rodeavam, esse caminho que você seguiu, já tinham se adaptado a essa nova Magui?
M: Não havia e nem pensavam em psicologia, também. Eu tinha dito, no comecinho da minha fala, que meus pais eram muito liberais, muito modernos, muito abertos para o tempo deles, eles me deixaram ficar um ano na Europa com 16 para 17 anos e quando eu voltei dizendo que eu queria estudar, que eu queria trabalhar foi meio assustador, especialmente para o meu pai, porque ele não esperava uma filha estudando numa faculdade achou muito estranho, não foi bem visto, foi aceito mas não foi bem visto porque não era valorizado; exatamente o contrário do que é hoje, onde os pais valorizam tanto os filhos, as filhas entrarem na faculdade, acompanham o esforço no vestibular. Nada disso. Meu pai torceu o nariz, achou uma má idéia eu fazer uma faculdade. Ele dizia que a USP era um antro de comunistas e de prostitutas e, realmente, era mal visto o que eu ia fazer. E, também, que eu não precisava trabalhar, ele podia me sustentar, a filha dele trabalhando era uma coisa estranha.. Mas ele aceitou.

S: E o que era a USP?
M: A USP era isso. (risadas). Não como ele via, evidentemente, mas era sim um lugar de pensamento de esquerda naquela época, eram os grandes nomes da esquerda no Brasil daquela época. Estavam todos lá. Não eram evidentemente prostitutas as moças, mas eram mais liberais do que as mocinhas da minha família, vamos dizer assim. Era um outro mundo.

S: Você disse que voltou para estudar e trabalhar. Você trabalhava, também, durante a faculdade?
M: Trabalhava com o que eu aprendi lá, fiz curso de decoração, naquele ano tinham várias matérias, era um curso muito bom, muito bem feito, um ano inteiro por exemplo sobre cores, eu sabia bastante de decoração, perspectiva,... sobre história da decoração, dos estilos. Então eu achei que eu podia trabalhar com isto e, eu fui pedir, havia uma revista, a única naquela época, era "Casa & Jardim".

S: Que ainda tem.
M: Ainda tem. Mas aí eu fui lá na redação, me apresentei, era um senhor de origem alemã, muito simpático, não me lembro o nome dele, que me olhou com uma certa desconfiança - o que essa mocinha está fazendo aqui - eu disse a ele que estava voltando de uma viagem, da Europa, que tinha aprendido decoração e gostaria de trabalhar na revista. Ele me deu umas fotografias e disse: "- Leve para sua casa e escreva um texto, um artigo sobre essas fotografias dessa casa e traga". Eu escrevi e ele ficou muito admirado, ele gostou muito do meu texto e me contratou. E durante todo o tempo da faculdade, foram quatro anos, eu trabalhei na Revista Casa & Jardim e fiz a faculdade.

S: Você trabalhava como jornalista, ... o que você fazia?
M: O que eu fazia era o seguinte: tem tal casa para você visitar. Ia eu e o fotógrafo. Eles faziam o contato, eles agendavam a data e a casa (alguém lá fazia isso, eram casas muito lindas daqui de São Paulo), e eu então ia visitar a casa que a dona já estava me esperando, ela sabia que a casa dela ia ser fotografada para a Casa & Jardim, ia ser comentada, eu visitava a casa, olhava o que tinha de interessante, dava sugestões para o fotógrafo do que eu queria que fosse fotografado e escrevia o texto. Então foi isto o que eu fiz durante quatro anos.

S: Isso nós estamos na década de 50? 49 a 51? Dois anos, três anos.
M: Isso, eu estudei de 49 a 51. Não, foi mais, desculpa, eu estou enganada. Eu comecei a faculdade em 1952 e terminei em 1955. De 49 a 51 eu ainda estava no colegial, nessa época eu não trabalhei. (...) Nessa época eu precisava estudar para entrar na faculdade, essa época eu fiz o colegial. Eu precisei estudar muito no colegial, como eu tinha estudado muito pouco no ginásio, eu não sabia nada (riso)

S: É verdade..!
M: Não sabia nada de matemática, não sabia nada de nada. Eu só escrevia bem. Sempre tive muita facilidade para escrever. Mas o resto: química, física, matemática, eu não sabia nada. Então, o colegial foi uma época de muito estudo. Eu só estudei. Essa fase de trabalho foi já na faculdade, durante o curso de filosofia, portanto, foi de 1951 a 55; 49 a 51 foi a época do colegial.

S: Esse trabalho você fazia ... no sentido de buscar uma autonomia, mas também, te dava muito prazer?
M: Dava, dava muito prazer. Até hoje eu gosto muito de decoração. Você pode ver aqui pela minha sala, os detalhes... aqui é minha sala!. (risada)

S: Você quem decorou?
M: Sim, nunca entraria outra decoradora na minha vida(risos) ...a não ser eu mesma! Então, eu gosto muito, eu gosto muito de arte, eu gosto muito de decoração, realmente, foi muito prazeiroso. E me dava essa coisa de não inútil mais, a coisa da Europa: a gente tem de trabalhar, a gente tem de ganhar o pão, a gente tem de não ser inútil na sociedade, não ser alienado, então, esse vínculo com o social, o trabalho faz parte dele e ficou assim: eu precisava trabalhar porque eu precisava me vincular ao social através de ser útil, isso ficou muito forte depois dessa viagem. Eu precisava estudar, eu precisava trabalhar.

S: E durante a Faculdade de Filosofia, que áreas foram lhe chamando a atenção? O que você foi aprofundando?
M: Eu gostei de tudo. Nós tínhamos ética, estética, lógica. Eram professores franceses que davam cursos naquela época, o professor de lógica era o Professor Granger que dava aula em francês. Eu levava vantagem porque eu entendia o que ele falava (riso) porque ele falava um francês disparado de parisiense e as pessoas tinham dificuldade de entender. Mas foi um curso muito bom, era um curso de altíssimo nível. O grupo de alunos também era um grupo muito forte. Eu era muito amiga do Giannotti que hoje é um grande filósofo. Ele era um ou dois anos acima de mim, mas nós tínhamos muitas aulas juntos. Fernando Henrique Cardoso e Ruth Cardoso, hoje presidente e a nossa primeira dama, eram colegas, eles faziam sociologia (Ciências Sociais) e nós tínhamos algumas aulas juntos. Então, era um grupo muito especial, de gente de muito alto nível, tanto professores como alunos. Foi uma faculdade excelente.

S: Essa era uma época que os professores estavam em formação. Então, a influência dos professores franceses, ou da missão francesa, era muito forte.
M: Muito grande. Havia professores americanos dando psicologia e havia professores franceses dando matérias de filosofia.

S: Esses professores gostavam do Brasil? Eles se davam bem aqui, Magui?
M: Muito. Eu acho que sim. S: O Roger Bastide estava nessa época? M: Estava... ele foi um que ficou fã do Brasil.

S: Você teve aula com ele?
M: Não, eu não cheguei a ter aula com ele pessoalmente não. Mas me lembro dele, dando aulas na sociologia.

S: E eles, em geral, ficavam quanto tempo por aqui?
M: Eles iam e vinham.

S: Eram convidados?
M: Eram professores convidados. Ficavam temporadas aqui. E eu tinha uma professora que era a catedrática de psicologia. Naquele época não eram os departamentos, eram as cátedras. A catedrática de psicologia era a doutora Annita Castilho Marcondes Cabral, e esta senhora era uma senhora muito especial, ela era muito brava...

S: Catedrática da psicologia, na filosofia?
M: Exatamente... a cátedra porque a psicologia era dada em duas áreas: era dada na filosofia e na pedagogia. Na pedagogia era a doutora Noemi Silveira Rudolfer, que era uma outra grande estrela. Eram duas grandes estrelas: ela era a catedrática da psicologia na pedagogia e a Annita Cabral era catedrática na filosofia. E foi minha professora, ela tinha vários assistentes: a Carolina Martuscelli Bóri, o Dante Moreira Leite era assistente dela e ele voltou a ser meu professor (ele tinha sido meu professor no colegial e voltou a ser meu professor, agora na faculdade, como assistente da Annita). E havia psicologia em todos os anos, a carga era bastante grande, eram quatro anos de faculdade, então nos quatro anos eu tive matérias de psicologia. Eu gostei muito, mas não gostei mais que as outras não. Eu gostei tanto quanto, mas no final, naquele momento de fim de curso, sem saber o que eu ia fazer daí para frente, a Annita me convidou para ser assistente dela. Então eu, imediatamente, saí da faculdade já empregada na faculdade. Na verdade, eu nunca saí da USP, eu só saí de lado. Eu saí do lado de aluno e passei para o lado do professor. Aos vinte e dois anos, eu estava começando a dar aula na USP, como assistente da cátedra de psicologia, para o curso de filosofia.

S: E você dava aula do quê? De tudo um pouco? Era uma cátedra, ....o catedrático resolvia.
M: Eu dava algumas muitas matérias porque ela decidia quem é que ia dar o que naquele ano. Era uma cátedra: esse ano você vai dar psicologia social, esse ano você vai dar parte de teste, esse ano você vai dar psicologia do deficiente mental. Dei algumas matérias.

S: Isso quer dizer que, você aprendeu muito dando aula, então?
M: (risada) Aprendi muito dando aula. E muito mesmo, porque foi outra fase muito tensa minha. Assim como tinha sido muito tenso estar na Europa e me sentir tão ignorante, foi muito difícil aos 22 anos, de repente, eu me ver professora da USP. Eu estudava muito, muito, muito para encarar os alunos que eram todos mais velhos do que eu, porque aluno de filosofia, em geral, não é jovem, são alunos que vão fazer faculdade depois de já terem uma carreira. Eu tinha... um aluno rabino, ... um diretor do Mackenzie (tinha sido meu diretor no tempo que eu estudei lá), teve um delegado de polícia, um advogado, um psicanalista. Esses eram meus alunos da filosofia! Então era muito difícil, para eles era muito difícil aquela mocinha. Eu parecia mais jovem, eu era muito magrinha, muito pequenininha, baixinha. Então, de repente, eu parecia 15 anos e estava ali na frente, dando aulas para eles, de psicologia. Então foi muito duro para mim, me impor por conhecimentos, ... por saber o que eu estava falando. Então eu estudava, estudava... loucamente para poder fazer isso.

S: Você citou uma série alunos homens. Era uma tendência haver mais alunos homens do que mulheres, ou não? Mesmo na filosofia?
M: Tinha mulheres também, mas tinha muitos alunos homens, eu diria. Na filosofia, tinha mais. Na psicologia não: o grande número era de mulheres.

S: Já era assim. E na USP, em geral, com certeza?
M: Já era assim, logo em que ela começou. Mas na filosofia havia mais homens do que mulheres... Na USP, dependendo do curso: letras tinha muitas mulheres; geografia e história tinha muitas mulheres. Dependendo do curso. Porque era a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Mas em filosofia havia mais homens do que mulheres. Nós éramos uma minoria. Trabalho e Profissão

S: E de 55 até quando, você foi assistente da Annita?
M: Eu comecei a dar aula em 1956, eu me formei em 55. Em 56, 57, eu dei aula para os alunos de filosofia, foram dois anos só para eles. Nesse momento, num acaso, estava acontecendo um movimento que eu entrei nele, que era o movimento da doutora Annita propondo que existisse um curso de psicologia aqui no Brasil. A idéia foi dela, foi ela que iniciou esse projeto, um processo na Congregação da Faculdade de Filosofia, o curso tinha de ser aprovado pela congregação; foi uma luta muito grande dela..., conseguir aprovar o currículo, aprovar o processo que existisse um curso de psicologia separado...

S: Havia muita oposição? Da Filosofia?
M: Havia muita oposição, todo o pessoal da filosofia achava um absurdo, achavam que a psicologia era uma parte da filosofia e que ela não tinha nenhuma condição de ser uma parte autônoma. Era como se fosse existir um curso de ética sozinho, um curso de lógica sozinho. Eles achavam que não tinha o menor sentido, psicologia era uma parte da filosofia. E o pessoal da pedagogia também achava isso, achava que era uma parte da pedagogia. (...) foi muito difícil, inclusive, o curso.

S: Havia no mundo... como é que o mundo se posicionava? Na Europa já havia, já havia se desvinculado.
M: Havia na Europa e havia nos Estados Unidos. Na América do Sul: havia no Peru, em Lima, e havia na Argentina, em Buenos Aires, eram os dois únicos lugares. Na época, como eu era assistente dela e ela nos dava ordens, as tarefas eram ordenadas. Ela dizia: você vai estudar os currículos, você fala idiomas então você vai escrever para os Estados Unidos, você vai escrever para a França, você vai escrever para a Argentina, Peru, você vai para lá, a gente consegue uma verba, você vai visitar". Eu fui visitar a faculdade... em Lima, no Peru, em Buenos Aires, na Argentina, fui para esses centros, fui para os Estados Unidos, fui fazer visitas para conhecer. Voltei para a França, agora para fazer uma visita, para conhecer o que se fazia nesses lugares e para daí poder montar um currículo nosso, para trazer as sugestões para que isso pudesse ser feito. O Dante Moreira Leite era o nosso diplomata, ele era muito simpático, ele era muito amável, era muito jeitoso assim de relações públicas, as tarefas dele eram essas. Ele tinha que ir ao Rio de Janeiro (a Capital ainda era no Rio de Janeiro, não era Brasília, ainda não havia Capital lá) convencer os deputados. Ele fazia essa parte de relações públicas. Cada um de nós tinha uma parte de tarefas.

S: E a sua o que era? Pesquisa de campo? Levantamento.
M: A minha foi mais levantar dados para o currículo. A minha primeira contribuição foi essa... para o primeiro currículo.

S: E você já estava do espírito de que a psicologia tinha de ser autônoma ou...
M: Olha, nós estávamos trabalhando. Nós éramos uma equipe pequena, ela tinha três assistentes, nós éramos quatro pessoas ao todo e havia também uma equipe de quatro, porque aí ela convenceu a Noemi Silveira Rudolfer a se juntar a ela e, então, havia a equipe da Noemi que também eram quatro pessoas.

S: Então vocês queriam juntar... pegar a psicologia da pedagogia...
M: As duas catedráticas juntaram forças... mas realmente a iniciativa foi toda da Annita Cabral. E ela conseguiu; eu soube depois, que na Congregação, ela conseguiu pela margem de um voto de diferença, apenas um voto e se não fosse possível esse voto, não seria possível não sei por quantos anos, ela tentar outra vez. Foi realmente difícil e... isso foi no final de 1957. Então, o primeiro ano do Curso de Psicologia, que era o primeiro, no Brasil, oficial, institucionalizado. Havia um movimento no Sedes (Sapientiae) da Madre Cristina, mas não oficializado. O nosso começou já oficializado, na faculdade de filosofia e já o encaminhamento para que fosse oficializado, enquanto curso no Brasil, com deputados envolvidos; logo também, se pensando em Conselhos de Psicologia, havia todo um encaminhamento nesse sentido. Então, começou o curso em 1958.

S: Corre a lenda, Magui, que a Annita Cabral - para se defender dos ataques - chegou a andar armada. Isso é verdade? Armada, quer dizer, revólver na bolsa?
M: (risada) É verdade. Numa das congregações, como ela era muito brava, era muito briguenta e ela foi muito agressiva com alguns dos professores especialmente com um professor que se chamava Cruz Costa, e ele fez brincadeiras com ela, ele gozou... ele era muito brincalhão, cínico... e ela não gostou das brincadeiras, ela se ofendeu e ela disse: - "Se eu fosse homem, ele não faria isso comigo. Então, como eu não sou homem e não posso provocá-lo para uma briga, eu vou com as minhas armas". Ela realmente tinha um revólver na bolsa, na outra congregação. E ele foi avisado. (risos) Ele não mexeu mais com ela.

S: Vai ver que o voto a favor foi dele, heim?! (risos)
M: Não se sabe. (risos) Mas, realmente, ela andava armada porque ela achava que assim ela iria impor respeito.

S: E ela era uma mulher, que você diz, sisuda, ou não?
M: Muito brava, era uma pessoa realmente dificílima, de um temperamento difícil. Mas uma grande batalhadora. A psicologia deve a ela, muito. Todas as grandes iniciativas da psicologia foram dela: ela fundou a primeira revista de psicologia no Brasil, ela fundou a Sociedade de Psicologia, ela fundou o primeiro curso oficializado de psicologia, ela teve um mérito enorme. Mas ela era insuportável. Então, ela acabou sendo esquecida muito fácil, porque ela incomodava todas as pessoas.

S: E aí, em 1958, começou a faculdade de psicologia. Muitos alunos, Magui, muita gente procurou?
M: Começou o curso, começou a faculdade. Não me lembro, mas foram muitos sim. Eu não me lembro quanto, exatamente, mas tinha bastante gente. E aí nós começamos a nos dividir: dando aulas para filosofia e para psicologia. Então, durante uns dois anos, eu ainda fiquei com o pé nas duas canoas e depois eu fiquei só na psicologia.

S: E funcionava no mesmo prédio?
M: Funcionava no mesmo prédio, na Maria Antonia.

S: Na frente do Mackenzie? Você mudou de lado, também? Do Mackenzie, foi para filosofia... (risos) E havia rivalidade, já na época?
M: Na frente do Mackenzie, mudei de lado. Só mudo de lado, isso (risos). Nossa... terrível, terrível.

S: Que vai eclodir na década de 60, não é?
M: ...eu estava lá no dia terrível, da grande briga do Mackenzie e USP.

S: Na década de 50 já havia então... A essa altura... Então, nos bares próximos... havia a confeitaria Holandesa?
M: Sempre havia uma animosidade: a USP era da esquerda, o Mackenzie era da direita, e isso... Não, não. Os movimentos eram internos porque se fossem nos bares..., já a briga era feia.

S: E... em 58, até 60, você dava aula nas duas. Em 60 a psicologia já está... Formou-se a primeira turma, quando?
M: 62 foi a primeira formatura. Demorou um pouco mais porque foi criado o quinto ano.

S: E a profissão já era regulamentada? Ou foi outra batalha? Quer dizer, os que fizeram psicologia não tinham certeza de que iriam exercer a ...
M: Foi em 1964, exatamente. A primeira turma se formou um pouco antes... Não, não, ainda não. (...) Estávamos fazendo um curso ainda sem saber se ia ser aprovado enquanto profissão. Mas era a situação da sociologia também; o pessoal de Ciências Sociais fazia o curso e não havia a profissão de sociólogo. Aliás, eu nem sei se existe até hoje, mas durante muitos anos não existia. Era a mesma situação que o pessoal da psicologia. Em 64, foi criada a lei que criou o exercício do psicólogo, da profissão de psicólogo, no Brasil.

S: E a Annita estava nisso também? O grupo de vocês?
M: Já era a gente que saiu do curso, já eram os assistentes, o pessoal do curso. A Carolina Martuscelli Bóri foi quem lutou muito pelo conselho. E havia pessoas de outros grupos também.

S: E tinha a oposição de quem, do CRM por exemplo, do Conselho Regional de Medicina, provavelmente?
M: Bastante grande, bastante porque nós éramos vistos como alguém que vinha tirar mercado. Havia uma competição com os médicos naquele momento. Nós íamos fazer psicoterapia, nós íamos entrar na área da saúde, nós estávamos entrando numa área que era exclusiva dos médicos. Então, a primeira grande briga, de rivalidade, foi com o CRM.

S: Parece que o psicólogo não pode fazer psicoterapia. É isso mesmo, ou não? Que foi uma composição, mudar o nome... Aconselhamento psicológico? E psicoterapia ficou com os médicos. Sei, sei. Ou com a mesma fatia com outros nomes (riso).
M: Exato. Eu não sei como está hoje, eu não acompanhei essa coisa das leis. Mas no início, para ser aprovado, nós ficamos com a palavra aconselhamento. Isso, aconselhamento psicológico. No jogo de palavras... vocês ficam com isso, nós ficamos com isso e aí nós deixamos vocês entrarem. Cada um ficou com uma fatia do bolo.

S: E de quem foi essa idéia, do aconselhamento psicológico, você sabe?
M: Eu não sei de quem foi a idéia, mas o articulador era o Dante. A articulação do conselho foi da Carolina e o articulador do curso de psicologia foi o Dante Moreira Leite.

S: Então em 64 já havia a profissão de psicólogo.
M: Quando ela foi regulamentada, já havia turmas formadas. A primeira começou em 58. Depois foi criado, no curso, o quinto ano... em 64 foi regulamentada a profissão.

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Arte-terapia e clínica

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S: E você, continuou como professora, ou se dedicou à psicologia clínica?
M: A vida toda eu continuei como professora. Eu só saí de lá quando me aposentei. Em 1983, aí chegou a época da possibilidade de uma aposentadoria, então nesse momento eu parei de dar aula na USP. Mas, num determinado momento, eu comecei também a querer trabalhar com psicologia clínica. Isso aconteceu porque veio ao Brasil uma professora de Arte-terapia. Ela era, eu não sei se russa ou holandesa, eu não sei exatamente a origem dela, ela veio ao Brasil, ela veio dar um curso de Arte-terapia. E eu nunca tinha ouvido falar em Arte-terapia. Quando eu soube disso, eu me inscrevi, eu fiquei muito fascinada, porque eu vi a possibilidade de juntar meus dois mundos: o mundo da minha infância, da minha adolescência, do meu grande amor que continuava sendo a arte; e o mundo do meu racional, que era então a psicologia. De repente, uma área de Arte-terapia eu juntava o racional com o amor, com a paixão que era a arte, e o racional, que era estudar, trabalhar na psicologia. De repente, a Arte-terapia mostrou essa possibilidade: eu posso juntar essas duas coisas, eu posso fazer isso.

S: E quando foi isso? Começo de 70, final de 60?
M: Eu não me lembro exatamente quando foi... no final de 60, no começo da década de 70 (...) vamos dizer, em torno do início da década de 70.

S: Você não tinha tido, então, contato, nem com o trabalho da Nise (referindo-se à Nise da Silveira), nem do Osório César...
M: Até então, com nada disso. Eu comecei, neste momento, a ouvir falar em Arte-terapia. Ela se chamava Hanna Yaxa Kwiatkowska. E essa senhora chegou e deu esse curso; daí para frente eu comecei a ler, comecei a estudar, e comecei a fazer cursos, comecei ir atrás de livros, como eu sabia muito de arte, foi fácil juntar o que eu sabia, com aquilo que eu sabia já de psicologia. Foi fácil entrar nessa área. Na verdade, a junção é que eu não conhecia: como juntar essas duas coisas. E a partir do meu interesse, do início do meu trabalho, eu comecei a dar cursos em Arte-terapia. Eu fui dar um curso no SESC, da Dr. Vila Nova, havia um coordenador naquela época que se interessou por esse trabalho e ele me propôs de dar aulas lá. Eu comecei a dar cursos no meu consultório, eu comecei a dar aulas na FAAP e eu comecei... as pessoas começaram a se juntar em torno dessa idéia.

S: Então, antes de ser clínica, você estava dando aula ou já estava exercendo a arte-terapia?
M: Estava exercendo e dando aula. As duas coisas, eu comecei as duas coisas, paralelamente. Logo que eu comecei a trabalhar com isso, pediram para eu começar a ensinar.

S: Dar aula...
M: Logo em seguida de eu montar o meu consultório, montei um ateliê de Arte-terapia, comecei a trabalhar e nesse momento já comecei a dar aula. E comecei a ter pessoas se aproximando de mim, se interessando pelo trabalho e propondo de fazer coisas juntos. Uma dessas pessoas foi a Radhá Abramo, foi uma amiga muito querida e uma grande colaboradora. A Radhá Abramo, eu não me lembro o que ela fazia na FAAP nesse momento, se ela estava estudando ou dando aulas, mas ela me procurou e nós montamos uma parceria, onde eu fazia a parte psicológica da Arte-terapia e ela ensinava os rudimentos de arte, para que as pessoas pudessem trabalhar um pouco com os materiais artísticos, e a partir do que ia surgindo, da forma de trabalhar e do que ia surgindo como conteúdo, eu ia fazendo os comentários psicológicos, psicoterapêuticos.

S: Isso na FAAP? Ah... com clientes?
M: Não. Nós nos conhecemos na FAAP, mas o nosso trabalho começou na década de 70, juntas. Fazendo uma parceria. Com clientes: começamos no meu consultório. O Carol Sonenreich, que era o chefe da psiquiatria do Servidor Público aqui de São Paulo, ele nos convidou, a mim e a Radhá Abramo, para fazermos um trabalho de Arte-terapia com os psicóticos internados no hospital, para ver o que aconteceria: se seria bom, se seria adequado, se seria uma forma interessante de trabalho com eles. E aí nós fomos fazer esse trabalho, fizemos lá durante (a idéia era de que fosse um trabalho curto, rápido, mas acabou se alongando) quase um ano. E foi muito bom, foi muito, muito interessante... nós planejamos todo o trabalho, numa seqüência do que a gente achava que seria interessante, as técnicas o que se visava com cada técnica. Nós começamos, por exemplo, com cerâmica para que eles pusessem bastante agressividade para fora. Para depois eles poderem começar por mais emoções, para no fim, eles trabalharem mais com lápis e crayon que é mais racional, define mais, nós fizemos toda uma programação. Foi um trabalho muito rico, muito interessante, muito criativo nosso, a Radhá e eu criando todo esse processo, e muito bom. E, quando terminou realmente eles gostaram, acharam interessante e quiseram manter, no Hospital do Servidor, o trabalho de Arte-terapia. Mas nenhuma de nós queria trabalhar lá, nem a Radhá, que tinha outros trabalhos que ela fazia, era uma crítica de arte e ainda é (...); eu era professora da USP, tinha o consultório. Nossa idéia não era ter um emprego, em tempo integral no Hospital do Servidor Público; era introduzir essa técnica e deixar que alguém continuasse fazendo. Foi contratado, na época, uma pessoa, não me lembro quem, que continuou o trabalho lá. Não sei se ainda existe, na época ele ficou implantado e foi muito gratificante. Um outro trabalho muito gratificante que nós fizemos foi na Penitenciária do Estado. Nós tivemos idéia de trabalhar com presos e havia um amigo nosso que era professor de arte, na verdade, de terapia ocupacional dentro da Penitenciária, chamava-se Sérgio (eu não me lembro o sobrenome dele). E ele achou que seria muito interessante se a gente pudesse dar uma assessoria para o trabalho dele lá. Era ele quem estava lá em contato com os detentos; mas nós fizemos toda uma programação que ele executou. E foi um trabalho lindíssimo também. E como eles gostaram muito de fazer isso, a gente conseguiu depois que fosse feito uma exposição dos trabalhos deles, fora da penitenciária e que fosse vendido esse trabalho e que eles recebessem o dinheiro. Foi extremamente gratificante; eles diziam que tinham saído da penitenciária através da Arte-terapia; porque as pessoas viam, fizemos no Hospital do Servidor Público uma exposição deles, fizemos em outros lugares, fizemos muitas palestras. Então, foram trabalhos muito gratificantes no sentido social, no sentido comunitário, que a gente conseguiu fazer com Arte-terapia nessa temporada.

S: E parece que a sua parceira Radhá foi uma figura que te acompanhou nesses anos
M: Por bastante tempo, nós nos separamos no momento em que, ela que era casada com Cláudio Abramo (grande jornalista, uma figura incrível, maravilhosa, uma das grandes figuras que eu conheci na minha vida) e ele foi trabalhar na França, ele foi representar a Folha, se eu não me engano, como correspondente estrangeiro, em Paris, e eles foram morar lá. E nesse momento acabou a nossa parceria, nós continuamos amigas, mas não trabalhamos mais juntas, porque por muitos anos ela ficou trabalhando, morando na França, vivendo lá. Nesse momento eu acabei fazendo outras parcerias, com outras pessoas...

S: Você seguiu outro caminho?
M: Não, continuei nesse caminho, mas com outros parceiros, outras formas. Cada pessoa traz uma contribuição diferente. Os novos parceiros trouxeram novas contribuições que foram diferentes desta.

S: Você poderia definir para nós o que você chama de Arte-terapia?
M: Arte-terapia é um trabalho com a imagem. A imagem é uma expressão mais primitiva do que a palavra. Ela é menos censurada, ela é mais solta, ela é mais autêntica... o inconsciente se expressa melhor através de imagens, seja imagens imaginadas, imaginárias, seja imagens escritas, desenhadas. A imagem traduz melhor o nosso inconsciente do que as palavras, nós nos censuramos mais quando nós verbalizamos. Então, basicamente, é a forma de expressão mais fácil, mais livre, mais solta e que ajudava as pessoas a se exporem melhor, se conhecerem melhor, se organizarem melhor através de um trabalho porque elas se viam fora através do que elas faziam. Então estabelecia-se um diálogo entre o estava sendo feito e o que a pessoa estava vendo; todo um trabalho de auto-conhecimento, de auto-expressão e de auto-desenvolvimento que era feito através da arte.

Não era uma intenção artística no sentido de ser uma coisa estética, era uma intenção da arte sendo utilizada para expressão do Eu, para expressão da pessoa, da alma, para expressão da vida, da história.

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Orientação profissional

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M: Faz sentido o que eu falei para você?

S: Totalmente. Claríssimo. Magui, vamos voltar um pouquinho para os anos de 64 para que você possa nos contar o contexto político que vivia o Brasil nessa época, e, particularmente, dentro da nossa universidade.
M: Vou começar... contando o que eu estava fazendo na USP. Por que esse trabalho de Arte-terapia acabou sendo feito fora da USP. Acabou sendo feito no consultório, foi a minha entrada no consultório; entrei e aí, eu fiquei sempre trabalhando, paralelamente, em consultório e na universidade. Foi muito enriquecedor, é uma fórmula que eu sugiro que as pessoas façam porque o que eu tinha de estudar para ser professora, eu usava muito como psicóloga clínica. E a prática que eu tinha como psicóloga clínica, o contato com o paciente, me ajudaram muito a ser uma melhor professora. Eu sinto que as duas coisas, uma enriqueceu a outra, e que foi muito bom ter feito isso. Mas na faculdade o que eu estava fazendo, nesse momento, era Orientação Profissional. Eu fiquei com essa matéria..., encarregada dessa disciplina, e eu não gostei do que era feito. O que era feito de Orientação Profissional naquele momento, que eu li, que eu fui estudar, era testes. Testes: de inteligência, de aptidão, de interesses. A pessoa ainda não desenvolveu uma aptidão, então ela não vai mostrar aptidão que ela vai desenvolver. Ele ainda não tem interesses definidos profissionais, por isso ela ainda não sabe o que ela quer. O nível de inteligência serve para muita coisa. Às vezes, pode até atrapalhar, se for muito alto, e não ajudar a escolher, porque a pessoa pode tudo se ela é muito inteligente, então, atrapalha a escolha. Enfim, não era o caminho de testes, o caminho satisfatório. Então, eu comecei a estudar, a ler, me interessar e ver o que era feito. E o primeiro grupo que chegou no quinto ano (essa era uma matéria profissionalizante, era uma matéria de quinto ano), eu coloquei para eles a minha dificuldade, eu disse: "- Olha, não sei como dar esta matéria; é a primeira vez que vocês têm a matéria porque vocês são a primeira turma; é a primeira vez que eu dou a matéria".

S: Annita que falou para você dar a matéria. Sei...
M: Ah... claro! Ela mandou, está mandado. Eu dizia: é a primeira vez que eu vou dar, e eu não gostei de nada do que eu li. Então, a minha proposta é que a gente faça um grupo de Orientação Profissional aqui na classe; a classe era pequena nesse momento, não me lembro o número de pessoas, mas bem menor do que tinha entrado (porque muita gente desistiu pelo caminho), a classe tinha em torno de 15 a 20 pessoas, vamos dizer, eu propus que a gente fizesse um grupo, um grupo terapêutico... em função da escolha profissional porque vocês tem uma escolha a fazer, vocês vão ser os primeiros psicólogos formados no Brasil. O que vai ser, o que vocês pretendem fazer, o que vocês querem fazer, que possibilidades vocês acham, de mercado, vocês vão ter que abrir o mercado, vão ter que criar o mercado. Eu era a coordenadora do grupo, não era mais a professora, nesse momento e durante o ano todo nós trabalhamos Orientação Profissional em grupo. E aí eu gostei muito da forma; eu gostei, os alunos gostaram. Então, no ano seguinte, eu propus que a forma de Orientação Profissional que eu ia fazer seria uma forma em grupo. E surgiu dessa experiência, não foi pensado para ser assim, isso surgiu da situação e os alunos gostaram tanto que vários desses ficaram me ajudando enquanto monitores. Então, nos anos seguintes, nós começamos a treinar os alunos neste grupo (porque evidentemente não podia um grupo de um ano um ano inteiro, ...nós delimitamos um grupo com começo, meio e fim; com número, se eu não me engano, de 12 sessões). Aí, terminado o grupo - onde eles alunos passavam pela experiência, de passarem por uma Orientação Profissional - eles começavam a atender jovens que queriam fazer uma Orientação Profissional. E quem eram esses jovens? No início nós não tínhamos um serviço ali na USP, então, nós saíamos para as escolas de periferia (escolas onde eles não tinham a possibilidade de contratar um psicólogo), saímos nos bairros pobres ali por perto da USP e fomos oferecer nas escolas um serviço em Orientação Profissional; assim começou o serviço: os alunos iam procurar escolas de periferia e atender. Mas o Serviço começou a ficar muito bem visto, muito falado, e o que aconteceu? Filhos dos professores vinham nos pedir ajuda. Professores vinham pedir que a gente atendesse os filhos, funcionários da USP..., funcionários da reitoria vinham pedir... acabamos montando um grupo, ali, na própria USP. Acabamos aceitando que as pessoas viessem, achamos uma boa idéia, começamos a fazer essa propaganda dentro da própria USP e aí começamos a receber clientes para o Serviço de Orientação Profissional dos filhos das pessoas que trabalhavam na USP: professores, funcionários, etc. e assim começou o Serviço de Orientação Profissional. Depois de uns anos que nós já estávamos fazendo isso eu soube do trabalho de Rodolfo Bohoslavsky. R. Bohoslavsky era um argentino que trabalhava em Buenos Aires, naquele momento, e uma aluna, foi nas férias para Buenos Aires, comprou o livro de Orientação Profissional, pelo Rodolfo, trouxe, me entregou e disse: "- Magui, acho que tem muito a ver o que este professor fala neste livro com o que você está fazendo conosco, ensinando para nós. E realmente, quando eu o li, eu disse: "- Esse homem escreveu a teoria da minha prática". Eu comecei pela prática, ele começou pela teoria. Fiquei encantada; li uma noite inteira, de manhã eu tinha acabado (de ler) o livro e fui procurar como descobrir o telefone, o endereço dele... escrevi uma carta para a editora; a editora encaminhou a carta para ele, dizendo do meu encantamento, do que nós fazemos; ele escreveu de volta encantado com o que a gente fazia (...) Começamos de irmãos da mesma idéia, nos encantamos de saber que nós dois existíamos, fazendo isso, e aí começamos a trabalhar para que ele pudesse vir para o Brasil e pudesse trabalhar conosco. Conseguir uma verba para que ele viesse ao Brasil. E era o Dante Moreira Leite, nesse momento diretor da faculdade, que ajudou muito para que essa verba fosse possível; e ele veio ao Brasil... 72, por aí, e ele começou a trabalhar conosco. Ele nunca tinha dirigido um grupo de Orientação Profissional, ele fazia uma teoria de Orientação Profissional; ele tinha participado de alguns grupos diferentes lá, numa linha operativa; mas o nosso grupo era nosso; ele se inseriu no nosso trabalho; e, ele passou ser a fundamentação teórica do nosso trabalho, e foi um casamento muito feliz. Esse momento, essa década de 60, quando nós começamos esse trabalho, de 64 até 70, foi um período muito conturbado. Era o momento dos grandes movimentos estudantis, que começaram na França e vieram para cá, momento de muita revolução na universidade, os estudantes reclamando, achando que a faculdade estava toda errada, que a universidade não podia ser mais daquele jeito, que ela tinha que se adaptar, se modernizar, que eles tinham de ter uma voz ativa muito maior, então, foi uma grande revolução social, em São Paulo, no Brasil, no mundo e que se refletiu na sociedade, também na sociedade da universidade, na comunidade nossa, foi muita ebulição. Inclusive, eu sofri muito na pele esse período porque... foi o começo dos governos ditatoriais e, nesse momento, havia muita perseguição política e... alunos desapareciam. De repente, o aluno que estava, não aparecia mais.

S: Professores também.
M: Professores também, alunos também. Então foi muito, muito difícil. Inclusive uma assistente minha pessoal foi a Iara Iavelberg. Ela era uma moça ótima, muito bonita, muito viva, muito inteligente e quando ela se formou, eu a convidei para assistente de Orientação Profissional. E nós passamos uma noite, na minha casa, as duas juntas organizando como seria o curso desse ano: como seria o curso, o que ela daria, que partes daria, o que ela faria, emprestei todo o material meu para ela, ela levou para casa e, no dia seguinte, eu tive a notícia de que ela havia desaparecido nessa noite. Acho que ela soube, quando ela estava chegando na casa dela, ela percebeu um movimento, eu não sei como foi, mas ela soube que estavam dando uma batida e ela conseguiu fugir e foi quando ela desapareceu. Um tempo depois, ela foi encontrada, infelizmente na Bahia, onde a mataram.

S: Ela era esposa do Lamarca? Vivia com o Lamarca... Era namorada do Lamarca.
M: Ela vivia com ele. Eles não eram casados, eram namorados! Ela teve de fugir porque estavam atrás dela e isso trouxe, inclusive, complicações pessoais para mim, porque todo o meu material com meu nome estava na casa dela. Então, eu fui chamada no DOPS várias vezes, por várias situações. Nunca passei nenhuma coisa terrível de tortura, nada disso, mas era extremamente desagradável e tenso, estar lá, com aquelas pessoas muito mal encaradas e muito agressivas, me inquerindo, que parte eu tinha naquele processo todo, porque nós estávamos todos muito envolvidos. Então foi muito difícil. E ao mesmo tempo a... ebulição da faculdade. E a criação, nessa época também, do Instituto de Psicologia, acabaram com as cátedras e surgiu o Instituto de Psicologia e os departamentos. Então, no departamento, os chefes que seriam os coordenadores dos departamentos, seriam votados pelos professores e a primeira reunião de departamento, isso foi no fim da década de 60 começo da década de 70.

S: Seria o chefe de departamento, como é hoje?
M: Como é hoje, exatamente; houve... nós todos estivemos lá, presentes, a Dra. Annita e seus assistentes (que nesse momento era um grupo grande de pessoas), nós estávamos em torno de uma mesa grande e onde foi feita uma votação para o chefe; que não seria mais ela, ela poderia... claro, como titular, como uma das professoras.

S: Ela poderia continuar como titular... e teria de disputar para ser chefe de departamento. Você não foi leal a ela? O que é ser leal; eu sei que você conversou pessoalmente com ela e teve uma conversa muito clara.
M: Poderia ou não ser votada para chefe de departamento. E ela não foi votada e ela teve só um voto, da Maria Helena Steiner, que foi leal a ela e votou nela. Não, nós todos combinamos de votar na Carolina Martuscelli Bóri (...) Foi, eu fui à casa dela, dizer um dia antes, realmente foi um detalhe importante. Eu fui à casa dela, um dia antes dessa votação, dizer para ela que eu não ia votar nela porque eu achava que eram tempos novos, era uma outra mentalidade e que realmente precisava ser uma outra pessoa, que viesse já com a mentalidade de departamento. A Carolina tinha estado muito tempo nos Estados Unidos, tinha vivido essa realidade, dando aulas nos Estados Unidos, em universidades lá e ela já tinha esse conhecimento, esse know how de departamento, ela era muito mais aceita pelo pessoal jovem... e ela foi eleita a primeira chefe de departamento do Instituto de Psicologia da USP. Foi ela a eleita. E nós combinamos todos votarmos nela que representava uma renovação. E eu fui explicar isso para a Annita, que eu estava a favor dessa renovação, eu achava importante, eu achava que eram novos tempos, nova mentalidade e que era importante, que viesse uma pessoa nova, não alguém que ia sofrer muito, inclusive, saindo do papel de catedrático, sendo só um coordenador de uma equipe que votava.

S: E foi surpresa para ela, nesse dia, quando ela não se... E como ela reagiu a isso
M: Eu não sei se foi surpresa ou se ela esperava, porque ela sabia o quanto ela era antipática, quanto ela era difícil, o quanto ela não era gostada enquanto pessoa. Ela sabia disso... Eu pessoalmente admirava muito a Annita, muito, como intelectual. Ela foi... algumas pessoas que marcaram minha vida intelectualmente: o Dante Moreira Leite, sem dúvida marcou a minha vida, marcou muito o meu estilo de pensar, essa coisa muito ligada à comunidade, ao social, que era muito dele; e o meu estilo de escrever psicologia, de trabalhar na psicologia foi muito marcado pela Annita porque ela era extremamente exigente. (...) Ela era do tipo que, se a gente apresentava um texto, ela punha o dedo na única palavra que eu não tinha muita certeza, ela dizia: "- Com isto aqui, você está insegura, vai estudar melhor, vai esclarecer, não está claro". Então, ela era de um rigor, ela era uma intelectual fantástica, brilhante mas ela era uma mulher insuportável, neurótica, terrível. Era muito complicado manter a Annita numa chefia de departamento. Ela sabia... dessa antipatia dela, ela sabia dessa dificuldade, ...que as pessoas, na maioria, não iriam votar nela, mas, eu não sei se ela esperava que fosse uma coisa tão maciça. E a reação que ela teve, quando foi votado e surgiu o nome da Carolina, a reação dela foi se levantar e ir embora e ela nunca mais voltou à USP, ela nunca mais pôs os pés lá.

S: Por quê, ela abandonou a profissão? É...
M: Ela abandonou tudo, nós não a vimos mais, ela desapareceu, ela não nos recebia na casa dela, ela não falava mais conosco, ela não voltou mais. Foi uma coisa muito forte mesmo. Aí você vê bem o tipo de pessoa, ou ela era a dona, a catedrática, a proprietária e ela mandava em tudo, ou "não me interessa". Ela nunca aceitaria ser uma das professoras do departamento. Essa foi a Annita.

S: E nessa ocasião, começo de 70 e final de 60, provavelmente já estavam se proliferando novas escolas de psicologia no Brasil. Quais foram as que seguiram, vamos dizer, o modelo de vocês. Aqui em São Paulo?
M: Já, já. A PUC, logo depois. Aqui em São Paulo e com uma equipe muito boa: o Joel Martins que era um dos professores nossos lá da USP, foi para lá, foi um dos primeiros diretores. O Enzo Azzi. Eles tinham gente muito boa... o Sedes manteve o curso de psicologia, durante um tempo, e logo apareceram muitas outras, muitas outras. Hoje em dia, eu soube (não sei se é esse o número exato) que aqui em São Paulo existem 28 faculdades de psicologia, não sei se é na cidade ou no estado. Não sei se já é até muito mais atualmente; um dia eu ouvi este número e guardei. Elas cresceram muito rapidamente, pelo Brasil todo.

S: Não sei se precisa gravar, mas você vê o estrago que você... (risada)
M: Mas é verdade, é verdade... Eu me sinto um dinossauro, me sinto da pré-história na psicologia. Eu estava lá antes de começar e quando começou. Em 1974 eu fui a um congresso no Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, de psicologia e já tinha duas mil pessoas! Eu levei um susto muito grande.

O que já estava de grande, de amplo, realmente, cresceu muito; eu não sei porque, cresceu um pouco demais.

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Reavaliação

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M: ...eu queria falar um pouquinho mais desse trabalho de Orientação Profissional. Ele foi muito importante na minha vida durante uma época e foi muito importante na USP. Ele chegou a ser o maior serviço de atendimento público da USP, num determinado momento; maior em quantidade de atendimentos. Nós tínhamos uma quantidade enorme de jovens que nos procuravam. Até hoje. Eu soube que até hoje eles atendem cerca de mil jovens por ano, no serviço da USP. Nós chegamos a atender o dobro disso, chegamos a atender dois mil jovens.

S: Em orientação? Sei...
M: Em Orientação Profissional, fazendo esses grupos. Então, não só atendíamos na própria USP, mas nós levamos esse trabalho para o SESC, para vários locais... nós fazíamos nos colégios, nós fazíamos na periferia... A gente esparramou essa coisa do grupo de Orientação Profissional.

S: E tem uma característica fundamental... que não é apenas um grupo de assistência, mas é um grupo de ensino, de formação. Formação de profissionais.
M: É o a gente dizia para eles: "ensinar a pescar"; "nós não estamos lhe ensinando... qual é a profissão, nós estamos ensinando você escolher uma profissão". Era um grupo de escolher uma profissão. Como se escolhe? Se escolhe conhecendo quem eu sou, se escolhe as profissões com informação ocupacional. E casando, juntando: quem eu sou, o que eu quero e que interesses eu tenho; com que coisas existem, com que áreas existem, que informações existem. Então foi um grupo muito rico, muito importante e que proliferou de uma forma, assim, impressionante...

S: Independente de você? Depois que você se afastou?
M: Sim, depois que eu me afastei, ele continuou na USP. Foi uma assistente minha a Ivete Piha Leman que continua lá, hoje, como professora de Orientação Profissional. Quando eu saí, quando eu me aposentei, ela ficou. Mas até eu me aposentar, até 1983, eu fiquei chefiando esse serviço e foi "a menina dos meus olhos" na USP. Foi um serviço que eu criei e uma técnica que eu criei. E essa técnica acabou sendo a minha tese de doutoramento. Quando eu fiz a tese de doutoramento, foi em 79, a gente já usava há exatamente dez anos, essa técnica. Ela já tinha dez anos de experiência...

S: Quando é que a USP mudou daqui para o campus? E o trabalho daqui foi para lá, também?
M: Eu não me lembro exatamente... mas, foi no meio disso. (risada) Porque no fim de 60 nós já estávamos lá. O Instituto já estava lá, essa briga toda já era lá na USP, eram os "barracões da psicologia", nós estávamos instalados nos barracões provisórios. ...68, 67, tudo isso já estava acontecendo lá na Cidade Universitária.

S: Então, quando você fala que o grupo vai para a periferia, já era de lá... e não daqui. A USP já estava na periferia (risos)... Sei...
M: Exatamente... nós íamos para escolas de periferia. Já (risos)... os jovens vinham, nós saíamos, foi um movimento muito grande. Então esse movimento foi um marco, foi a criação do serviço por mim e, também, a criação da técnica, que se usou na USP, que se usa até hoje e que foi a minha tese de doutoramento, depois de dez anos. Eu achei que a técnica já estava pronta, depois de dez anos de uso, a técnica já estava muito experimentada, então eu fiz: uma análise de conteúdo, do que tinha sido levantado em todos aqueles grupos, enfim... esse trabalho hoje é um livro sobre orientação profissional. Essa foi a história desse serviço.

S: Aí você fez a sua tese e se aposentou em 83? Como foi se aposentar? Foi uma decisão fácil? Você falou "agora eu me aposentei e vou fazer outra coisa"?
M: Em 83. A tese foi em 1979 e eu me aposentei em 83, foram 25 anos. Não, não foi fácil. Eu estava com muito medo do que ia acontecer. Esse vazio. As minhas manhãs todas eram na USP, as minhas tardes eram todas no consultório (...) Eu estava dando aula, ou estava no Serviço, estava dando supervisão para os alunos, eu estava todas as manhãs lá. ...ia ficar um buraco muito grande. Mas eu decidi: eu ganhei o direito de me aposentar. Era uma nova fase na minha vida. Eu terminei um ciclo, fiz 25 anos e decidi que eu queria ter aquele tempo disponível para uma nova experiência, para alguma coisa nova. Dá para você perceber que eu gosto de coisas novas? (risada) Não só, elas aconteceram por acaso: como eu estar presente no começo do curso de psicologia, realmente, foi um acaso; cheguei lá quando as coisas estavam acontecendo. Nas outras coisas, realmente, eu comecei... um trabalho de Arte-terapia aqui em São Paulo (existia no Rio de Janeiro, com a Dra. Nise da Silveira, um trabalho lindo, existia nos hospitais psiquiátricos, com Osório César). Mas não existia em consultório, não existia na faculdade, então foi um trabalho que eu tive uma parte bastante importante de pioneirismo. Esse de orientação profissional também: não existia nada, foi a primeira vez que se deu a disciplina, foi o primeiro grupo que foi feito aqui. Então houve, realmente, várias coisas onde eu inovei, porque eu achei que era importante começar uma coisa, tinha sentido. Então me bateu um pouco esse espírito, outra vez, nesse momento da aposentadoria, em 83. Vamos ver o que vem pela frente.

S: Você não sabia ainda o que te esperava?
M: Eu não tinha a menor idéia do que eu ia fazer. Eu tinha o consultório, que eu precisava, eu sempre me sustentei, eu nunca imaginaria parar. Mas o consultório tem uma coisa mais maleável de horário, que você pode organizar de uma forma a ter mais liberdade, do que a coisa da faculdade que você tem aquele ano letivo fixo, você está lá e não tem erro, você tem obrigações fixas de horário. Eu decidi, fiquei só com o consultório, aceitei a aposentadoria, contra a vontade lá dos colegas e de todos os que queriam que eu ficasse, porque eu podia ter ficado porque a gente pode ficar até os setenta anos, apesar de aposentado; você acumula: você fica com o dinheiro da aposentadoria e tem... Mas eu não quis, eu quis uma experiência nova.

S: E o que é que te pegou?
M: Eu escrevi para uma amiga chilena, que mora em Berkeley, que se chama Joyce Riveros, escrevi uma carta para ela e ela estava naquele movimento da Califórnia, muito ativo, movimento dos anos 70-80. Eu escrevi a ela dizendo "Joyce estou aposentada pela faculdade, tenho mais tempo para viajar, para fazer cursos, gostaria de aprender alguma coisa nova. O que você me sugere, o que existe de realmente novo atualmente aí, para ser feito?" E ela me escreveu: existe o trabalho de Milton Erickson, um psiquiatra, que trabalha com hipnoterapia, que é um trabalho utilizando estados hipnóticos dentro do processo terapêutico. É muito diferente de hipnose. É utilizar estados hipnóticos, estados alterados de consciência, visualizações, dentro do processo de psicoterapia. E que isto era novo, ele fazia isso de uma forma nova e que ela estava se inscrevendo para fazer o curso e já tinha me inscrito para eu ir junto com ela. Então lá fui eu para mais uma surpresa. E foi realmente muito, muito novo, Milton Erickson é extremamente criativo.

S: Foi ele quem deu o curso, ou não? Ele já tinha falecido?
M: Não... Ele já tinha falecido, infelizmente. Ele morreu em 1980, eu não cheguei a conhecê-lo, eu cheguei lá em 83, ele já tinha falecido. Então, eu não o conheci, eu fiz com os discípulos dele, mas eu peguei os grandes discípulos dele ainda trabalhando juntos, dando curso. E foi um marco, outra vez, e foi uma revolução. Toda a minha forma de pensar psicoterapia foi completamente virada de cabeça para baixo pelo Milton Erickson.

S: E a tua formação era psicodinâmica? Não tinha comportamentalismo. A USP não era comportamentalista?
M: Quando eu comecei, só existiam psicanalistas. Não... isso tudo veio depois. No início, a minha psicoterapia foi com: Dr. Joy Arruda, e os meus professoras lá na USP de psicologia clínica foram: a Virgínia Bicudo,o Dr. Durval Marcondes, o Aníbal Silveira. S: Desculpe, só um parêntese, quando é que a USP engatou nessa empreitada mais dirigida para cognitivismo, para experimentalismo? Talvez mais... M: Mais para frente, quando começou o departamento. Aí, com o poder da Carolina, do pessoal da experimental é que essa área veio muito forte. No início, no curso de psicologia, ainda era a psicanálise a grande linha aqui no Brasil. Eu nunca fui uma psicanalista, mas eu tinha uma leitura freudiana dos pacientes, vamos dizer assim, uma leitura psicodinâmica. Essa foi a minha origem de trabalho. Depois veio a gestalt através da Therese Tellegen, que foi uma influência muito grande. Depois vem o trabalho "rogeriano", que também foi uma influência muito grande. (Eduardo) Bandeira, que foi um carioca que estudou com Rogers e começou a trazer Rogers para o Brasil. Enfim, foram movimentos que foram chegando.

Eu nunca me interessei naquela época, pela psicologia comportamental; me interessei pela gestalt, por Rogers, chegou o cognitivismo, mais tarde, eu me interessei pelo cognitivismo, mas a experimental, nunca foi atraente para mim.

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Psico-oncologia

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S: De qualquer forma, estamos em 1983 e você está fascinada pelo Erickson.
M: Uma linha mais humanista e nessa época o Erickson era um grande humanista. Ele era extremamente original, criativo, uma pessoa interessante. Ele era um caipira americano, "menino da roça", e ele teve poliomielite, aos 17 anos. Numa época em que não havia cura, não havia o que fazer, então, o prognóstico é que ele ficasse paralítico, primeiro que ele morresse mas ele sobreviveu, que ele ficasse paralítico a vida toda. E ele começou observando uma irmãzinha pequenininha, ele com 17 anos e a irmãzinha com 9 meses engatinhando pelo chão, aprendendo a andar e ele conseguiu, observando esta irmãzinha, ele conseguiu aprender a andar novamente. Ele foi um homem excepcional, ele andava com uma bengala, com ajuda, mas conseguiu ficar de pé, mexer primeiro os braços, depois as pernas, tem histórias fantásticas deste homem. Conseguiu fazer uma faculdade de medicina, conseguiu ser um grande psiquiatra e criou um trabalho que é dele, que é a hipnoterapia ericksoniana, que é excepcionalmente criativo, diferente.

S: E ele manteve o defeito físico ou ele superou isso?
M: A vida toda. Inclusive ele voltou mais tarde a ter uma outra crise de poliomielite e ele, mais tarde, ficou muito inválido. Trabalhava em cadeira de rodas, ele teve uma degeneração de nervos, de músculos, ele falava com dificuldade, ele tinha muitas dificuldades físicas. Ele foi um homem muito doente, mas com uma alegria de viver incrível, com senso de humor incrível, o trabalho tem muito senso de humor, é um trabalho contagiante, eu me apaixonei. E eu aí entrei de cabeça nisso, fui muitos anos para lá em seguida, para fazer cursos, fazer cursos... estudei e, depois de uns anos, eu tive coragem de começar a trabalhar dessa forma. Por que era tão difícil, tão diferente. Não foi muito fácil, eu fui me adaptando aos poucos mas, depois de alguns anos, eu comecei a atender pacientes e dar cursos assim. E hoje eu faço isso. Hoje eu trabalho...

S: Você foi uma das que trouxe o Erickson ao Brasil.
M: Sim, fui. Quem trouxe realmente o movimento foi o José Carlos Vítor Gomes, de Campinas, é um psicólogo que tinha uma editora na época, a editora Psy, e ele quis trazer os livros. Ele lia Erickson, gostava muito e quis trazer os livros do Erickson. Ele convidou Jeffrey Zeig, que é o presidente da Fundação Milton Erickson, nos Estados Unidos (desde que ele faleceu foi fundada uma Fundação in memorium e ele é o presidente). Ele quis trazer o J. Zeig, traduzir os livros do Jeffrey Zeig sobre terapia ericksoniana. O intuito dele era trazer o Jeffrey Zeig, para fazer palestras, dar cursos, ajudar a venda do livro e da tradução do livro do Milton Erickson e ele, na verdade, conseguiu trazer o Zeig para o Brasil para o curso, começou a traduzir os livros, o mérito, neste sentido, foi muito mais dele. Eu ajudei muito o Zé Carlos a trazer o Zeig, eu já tinha cursos, já tinha clientes, eu já tinha o movimento, nós juntamos: o meu trabalho, com a iniciativa dele, econômica no caso, porque trazer o Zeig custava dinheiro. E esse foi o início do Erickson aqui no Brasil. Hoje já existem muitos institutos: foi fundado, aqui em São Paulo, um primeiro instituto ericksoniano. O Zé Carlos Vítor Gomes, a Marília Baker, que é uma brasileira que mora nos Estados Unidos (na época ela estava em S. Paulo) e ela morava em Fênix, no Arizona, onde fica a fundação, onde morava Milton Erickson e ela trabalhou lá um tempo. Nós três fomos a primeira diretoria do primeiro instituto brasileiro. E depois disso foram fundados muitos outros: de Belo Horizonte, Rio Grande do Sul, Vitória. Hoje existem muitos institutos, pelo Brasil, nem sei quantos são. Existem mais de 90 institutos pelo mundo. É um movimento que está crescendo cada vez mais, as pessoas quando entram em contato se encantam e a tendência é que realmente isto venha cada vez mais para cá porque é um trabalho muito inovador, muito incrível.

S: E esse crescimento se deve a que? À particularidade da técnica, eficiência dela para trabalhar com certos tipos de paciente?
M: A particularidade, a criatividade, a eficiência e, eu diria que, a rapidez, porque nós estamos em tempos hoje em que as coisas tem que ser rápidas, o mundo anda rápido, que tudo anda rápido. Hoje não faz sentido para as pessoas ficarem anos e anos num processo terapêutico, custa caro, é dispendioso, é complicado. É muito rápido o trabalho ericksoniano porque você trabalha com as imagens, no caso, com imagens mentais. E as imagens são muito rápidas, assim como as imagens desenhadas também são um processo rápido na Arte-terapia, as imagens mentais são um processo muito rápido. E eu hoje trabalho juntando tudo isso. Juntando Arte-terapia (continuo usando as imagens desenhadas, as imagens fabricadas numa cerâmica) e uso, hoje também, as imagens mentais nessa linha ericksoniana. E é assim como componho o meu trabalho hoje. Eu continuo no consultório, que eu nunca parei, e num determinado momento eu soube que se trabalhava, com esse trabalho de imagens mentais, com pacientes de câncer. E outro susto: o que é isso? Câncer, uma doença física, grave, mortal, que eu pensava que era, naquele momento; hoje eu sei que não é, hoje o câncer não é mais considerado mortal, hoje o câncer é considerado uma doença grave, crônica, mas não mortal necessariamente; hoje muitas pessoas se curam do câncer. Ainda é uma doença grave e difícil. Mas, enfim, naquele momento, na minha vida, no início da década de 80, era incrível que alguém pudesse trabalhar com psicoterapia, com qualquer forma de psicoterapia com paciente de câncer. Então, eu quis saber o que era isso e fui atrás. Soube que havia o Programa Simonton, que existe um médico chamado Carl Simonton, casado com uma psicóloga, Stephanie Simonton, e que eles haviam criado um programa de psicoterapia breve, com número fixo de sessões, com pacientes de câncer. E que eles usavam a técnica de visualização.

S: A técnica do Erickson? O programa do Simonton ... é temático, do Erickson não?
M: Eles usavam a técnica do Erickson, de visualização que é a técnica principal. É o instrumento principal do programa. É um programa temático, cada sessão tem um tema: ressentimento, morte, recaída, objetivos para o futuro. Exato, o Programa Simonton é temático, do Erickson não. A forma como a sessão é conduzida, é através da visualização; todos os temas, eram abordados sempre utilizando a visualização. Vamos pensar em objetivos para o futuro, vamos visualizar objetivos de futuro. Vamos limpar ressentimentos, vamos lá trás, na história, procurar os ressentimentos através de visualizações. Então, todo o processo é feito através de visualizações. E aí eu fui conhecer esse trabalho. Eu soube que, ele pessoalmente não estava fazendo mais, mas havia uma colega dele, que tinha começado o trabalho junto com ele, a Maggie Creighton que tinha um instituto na Califórnia, em Menlo Park (ao lado de Palo Alto) e que ela estava fazendo esse programa. Eu fui para lá, me apresentei a ela, disse que era do Brasil, que eu estava estudando Erickson, que eu era professora universitária, que eu era uma psicóloga.

S: Você foi bater na porta dela?
M: Eu tive uma introdução. Eu não fui exatamente bater na porta dela sozinha. Fui falar com o Edmundo Barbosa, brasileiro, que eu soube que estava trabalhando nesse programa. Na verdade eu fui bater na porta do Edmundo Barbosa e o Edmundo é que me abriu a segunda porta. Eu fui à casa dele, me apresentei a ele e disse que gostaria de conhecer esse programa (ele trabalhava no programa), ele era um membro de equipe, ele fazia a parte de trabalho corporal junguiano, que era a formação dele aqui no Brasil, e outras técnicas que ele tinha desenvolvido, aprendido. Ele fazia mestrado, nessa época, na Califórnia e ele trabalhava nesse Programa Simonton. Eu fui procurá-lo, dizendo que eu soube do programa, soube que existia na Califórnia, soube que ele era um membro da equipe, que era brasileiro e se ele poderia me ajudar a chegar lá. Ele me levou e me apresentou à Maggie Creighton. E aí, eu me apresentei a ela, dizendo quem eu era, o que eu estava fazendo e que gostaria de conhecer o programa. E ela me disse: tudo bem, só que nós não temos um programa de trainée (...) Nós atendemos os clientes e se você quiser, você entra no grupo junto com os clientes. E eu achei ótimo, Eles faziam: ou uma vez por semana, durante nove semanas; ou fazem programas compactos de nove dias, para pessoas que vinham de outros estados, outras cidades. E naquele momento ia começar um grupo compacto de nove dias. E lá fui eu fazer o grupo compacto de nove dias, das nove da manhã às seis da tarde. Todos pacientes de câncer e acompanhantes. O Simonton queria que viesse o paciente e alguém da família, para que pudesse haver também um trabalho com o familiar, que sofre muito com o paciente, todo o medo que aquele paciente, primo, irmão, tio, filho ou marido, enfim, que pode morrer, que este já está sofrendo, a família sofre muito! A comunicação entre o familiar e paciente fica muito difícil, fica muito truncada, fica muito complicada: o paciente não querendo falar as coisas que está com medo para a pessoa da família não ficar triste, a pessoa da família não fala do que está com medo para o paciente não ficar triste, então é toda uma coisa muito complicada. Então por tudo isso o Simonton achava importante que houvesse alguém da família presente, sendo trabalhado como paciente também, não estava ali como familiar, porque ele estava ali como alguém que estava sofrendo o impacto do câncer. Então, haviam pacientes de câncer, familiares e eu. Eu era a única pessoa que não estava naquele contexto e ela me apresentou, no primeiro dia: uma terapeuta do Brasil, mas isso foi esquecido completamente, porque ela começou com as técnicas, eu "entrei nas técnicas todas" e fiz, realmente, o grupo como paciente, tanto quanto eles. Foi um outro impacto, estou te contando muitos impactos da minha vida, este foi um impacto incrível! Estar lá, durante o dia todo, fechada numa sala, das 9 da manhã às 6 da tarde. Eu pegava carona, depois, com um dos pacientes que me levava embora para São Francisco (...) enfim, eu vivi, intimamente, coisas que eu nunca tinha vivido na minha vida. Eu nunca tinha vivido perto, a minha família não tem doenças desse tipo, a minha família morre de enfartes, de coisas muito rápidas; tem suicidas na família da minha mãe. De maneira geral morre de doenças cardíacas e morrem muito rapidamente: ou tromboses, ou coração. Então, essa coisa da doença que se prolonga, o sofrimento, os tratamentos, a quimioterapia, as cirurgias, as mutilações dos pacientes de câncer, a radioterapia... o câncer era terrível e os tratamentos eram tão agressivos e tão terríveis quanto o câncer. Foi um mundo onde eu entrei, de repente, e fiz parte íntima, aquelas pessoas falando das coisas mais íntimas. E eu lá misturada naquilo tudo, muito assustada, muito chocada, muito emocionada, muito triste e, ao mesmo tempo, muito alegre, porque havia momentos de muita alegria também nesse grupo, muita felicidade, muita esperança. Não foi um grupo triste, foi um grupo com tragédia e comédia, foi um grupo muito forte de emoções. E que marcou muito a minha vida também. E a partir disso, eu vim para o Brasil, não só falando do trabalho do Erickson, que eu já falava há alguns anos, que eu já mostrava aqui, que eu já fazia no meu consultório, mas mostrando como isso podia ser feito com os pacientes de câncer. E aí comecei a chamar colegas aqui no consultório e dizer: "- Quero contar para vocês de um programa incrível, de psicoterapia breve, que se chama Programa Simonton, com pacientes de câncer e que é fantástico". Ele dá uma força para os pacientes, ele dá qualidade de vida para os pacientes. Ele não cura ninguém, evidentemente, nem pretende curar, mas ele ajuda na qualidade de vida desses pacientes. E..., claro! Se você tem uma qualidade de vida melhor, se você tem uma forma de enfrentamento melhor do câncer, você tem até mais chances de se curar, quando há possibilidade de cura. Eu trouxe isso muito entusiasmada, muito apaixonada por esse programa e envolvi muita gente nisso. Várias pessoas que se interessaram, em particular uma mulher, a Maura Camargo que tinha tido câncer, uma psicóloga, que veio saber o que era isso e se entusiasmou tanto que trabalha até hoje com isso, e é hoje a Diretora do CORA - Centro Oncológico de Recuperação e Apoio, que é o grupo que trabalha com o Programa Simonton aqui em São Paulo, oficialmente.

S: Que você foi uma das fundadoras. E quando é que surgiu o grupo CORA, Magui? Mais ou menos. Como é que ele surgiu: você e quem mais? Aqui onde nós estamos?
M: Fui uma das fundadoras do movimento de Psico-Oncologia. Você me pergunta datas e eu sou ruim de datas. Mais ou menos? Há uns 15 anos atrás. Ele surgiu primeiro aqui no consultório... Aqui, exatamente. Nessa sala, onde nós estamos, a sala era um pouco diferente na decoração, mas, foi aqui mesmo. Na verdade, este primeiro grupo de pessoas, nós começamos a atender pacientes, fizemos uns dois grupos aqui na sala. Nesse momento, o Edmundo Barbosa já tinha vindo para o Brasil, também, de volta, ele se integrou aqui ao grupo. A Maura, o Fernando Bignardi (médico homeopata), enfim, a Elisa Parayba Campos (é uma psicóloga, que trabalhava aqui, que se interessou), um grupo de pessoas. Eu estou lembrando apenas alguns. Nós começamos a atender pacientes de câncer aqui no consultório e demos um nome para o nosso grupo: Centro Alfa. Começamos informalmente a trabalhar aqui. E nesse momento, mais ou menos por essa mesma época, 83,84 nós começamos o Centro Alfa. Em 86 foi formado o grupo CORA por ex-pacientes de câncer e pacientes de câncer, eles não tinham uma equipe de psicólogos nem de médicos, eles eram apenas pacientes de câncer, um grupo de auto-ajuda. Eles souberam disso lá nos Estados Unidos, da eficiência de grupo de auto-ajuda e eles se reuniram aqui em São Paulo e fizeram um grupo de auto-ajuda que se chamava CORA; era liderado pela Edith Elek (jornalista) e pelo Egídio Bianchi (engenheiro). Eles dois eram ex-pacientes, eles é que começaram o CORA, na verdade. Eu não sou fundadora do CORA, foi fundado por eles. Este grupo, quando soube do nosso trabalho, nos procurou pedindo que a gente fizesse esse programa com eles e que nós juntássemos forças. E nesse momento é que houve uma junção: CORA com o Centro Alfa. No Centro Alfa, nós éramos profissionais e eles eram ex-pacientes, trabalhando com outros pacientes, então nós juntamos forças. E como o CORA já tinha uma regulamentação, já era uma fundação sem fins lucrativos, enfim, já tinham toda uma regulamentação burocrática e nós não tínhamos nada, nós achamos mais interessante nós nos integrarmos a ele. Na verdade, essa foi a fundação dessa equipe maior, dessa forma que o CORA tomou depois. O CORA hoje tem o Programa Simonton e tem pacientes e ex-pacientes trabalhando lá, como voluntários, que formam a equipe...

S: Os terapeutas são ex-pacientes?
M: São ex-pacientes. Praticamente todos os terapeutas que trabalham no CORA são ex-pacientes que ficaram trabalhando lá.

S: Continuando aí a Psico-oncologia, depois do grupo CORA, do grupo Alfa, que mais você aprontou aqui? (risos)
M: Em 1992 eu fui convidada para fazer parte de um grupo que trabalhava com Psico-oncologia. Eram todas pessoas que não se conheciam, eu conhecia uma ou duas pessoas só, daquelas, mas era um grupo que trabalhava com Psico-oncologia e que estava encarregado de fazer um Congresso de Psico-oncologia aqui em São Paulo. Era o terceiro congresso no Brasil: o primeiro foi em Curitiba, o segundo foi em Brasília e o terceiro foi aqui em São Paulo. E esse grupo começou a se reunir aqui no consultório que era uma sala maior (sempre as coisas acontecem aqui nessa sala, a sala faz parte desse processo todo) e eu comecei a fazer parte integrante desse grupo. Eram professores universitários: Maria da Glória Gimenes, ela trabalhava em Brasília antes e tinha trabalhado nos Estados Unidos em hospitais de câncer e era uma das pioneiras da Psico-oncologia aqui no Brasil, ela tinha sido a presidente do congresso de Brasília, naquele momento ela tinha vindo para São Paulo...; Maria Júlia Kovács, que é uma professora da USP, tem um livro publicado sobre morte e morrer, também fazia parte desse movimento; Vicente de Carvalho, que estava comigo desde o início do trabalho lá do Centro Alfa e do CORA, que é um psiquiatra; Maria Helena Bromberg, que é uma professora da PUC, trabalha com luto. Enfim, eu estou citando algumas. Eu não gosto de citar pessoas porque eu fico sempre devendo para aqueles que eu não citei. Havia um grupo grande, de gente muito interessante e muito interessada. Dra. Nise Yamaguchi fazia parte, que é uma oncologista. Enfim, todo esse grupo começou a se reunir em 92 para montar um congresso que seria em 94; nós realmente trabalhamos durante dois anos para fazer um bom congresso aqui em São Paulo e nós nos reuníamos às quartas-feiras, inicialmente, uma vez por mês. Depois a cada quinze dias e, no último ano (já em 93), a cada semana. E nós tivemos idéia de, para lançar o congresso - como era uma idéia muito nova, Psico-oncologia, que é a área que trabalha com os aspectos psicológicos ligados ao câncer, seja na própria origem do câncer, as influências psicológicas que podem levar ao câncer, características, as possibilidades, os caminhos psicológicos que podem de alguma forma influenciar o aparecimento de um câncer numa pessoa, como as conseqüências psicológicas do câncer, do próprio diagnóstico, de estar com câncer. O que é ter um câncer, o que é ficar mutilado em função do câncer, o que é viver todos aqueles tratamentos. Todos esses aspectos psicológicos entram na Psico-oncologia. Se a pessoa vai para o caminho de falecer, de morte, trabalhar essa passagem, esse final de vida, o doente terminal, todos esses assuntos são assuntos da Psico-oncologia. O trabalho com o luto, depois, da família isso tudo entra na Psico-oncologia. Esse campo é muito vasto, é muito amplo, é um campo que hoje se trabalha muito no mundo todo e que naquele momento ainda era muito pouco conhecido aqui no Brasil, aqui em São Paulo. Tivemos a idéia de expandir o conhecimento, para que as pessoas ficassem sabendo o que era a Psico-oncologia e aí se interessassem pelo congresso. Um ano antes do congresso... em 93 nós tivemos a idéia de dar um curso universitário sobre Psico-oncologia, que isso atrairia gente... o curso, enfim, ficaria falado, as pessoas conheceriam e a gente iria dar palestras em outros lugares. E o curso foi no Sedes Sapientiae. Eu ofereci à Madre Cristina (que era viva nessa época e ainda muito ativa), eu ofereci e ela era uma mulher com a cabeça aberta, incrível, ela gostou da idéia do curso e nos convidou para dar um curso lá. E nós damos lá, até hoje. Ele começou como curso de extensão e hoje é curso de especialização, em dois anos. E uma equipe de professores foi lá, para dar esse curso, nós começamos: eu, depois eu e o Vicente de Carvalho, depois entrou a Maria Helena Bromberg, a Maria da Glória Gimenes e a Miriam Ramalho e hoje nós formamos uma equipe de cinco professores, e temos vários monitores. Continuamos o curso de Psico-oncologia. É um curso de muito sucesso, nós trabalhamos atendendo pacientes de câncer lá no Sedes, existe um serviço gratuito aberto à população. Os alunos fazem o atendimento e os professores fazem a supervisão, temos vários monitores de turmas já formadas, que ficaram como monitores, hoje uma equipe bastante grande que trabalha, dirigindo o curso e oferecendo esse serviço à sociedade, à comunidade, em São Paulo. É importante estar dizendo isso aqui que: existe um serviço gratuito de Psico-oncologia, lá no Sedes, oferecido pelo curso. Enfim...

S: Esse serviço não segue a proposta do Simonton, do Erickson. É uma outra proposta?
M: É uma proposta mais ampla. O Simonton é um dos programas que se usa em Psico-oncologia... O Simonton é um programa e o Erickson é uma técnica. Agora, a Psico-oncologia é muito mais ampla. A Psico-oncologia trabalha com todos esses aspectos que eu estava falando.

S: Com dor também?
M: Com dor também, exatamente, nós trabalhamos com dor. Com tudo aquilo, todos os aspectos psicológicos relacionados com câncer: a família, o paciente, o próprio profissional. Nós temos atendido muitos médicos, muitos enfermeiros que trabalham com câncer... Enfermeiras, por exemplo, que trabalham na oncologia pediátrica, elas ficam muito mal, elas se apegam às crianças e, se a criança morre, elas ficam muito mexidas com isso. Nós estamos trabalhando em vários lugares atendendo às equipes que trabalham com pacientes de câncer, às famílias e aos pacientes de câncer. Esse é o trabalho de Psico-oncologia. E isso me fez voltar à vida universitária, porque eu acabei voltando a dar aulas no Instituto Sedes Sapientiae, que são cursos de especialização e eu acabei voltando...

S: Parece que você tem o dom da transformação e do renascimento, Magui, e...
M: E eu acabei voltando, depois que eu já tinha abandonado a vida universitária, voltei através da Psico-oncologia e voltei para o Sedes.

S: E parece que você vai permanecer por muitos anos porque eu sei que você, em dado momento por essa época ,que você se tornou imortal.
M: (risada) Foi, nesse ano. Esse ano foi um ano importante. Esse ano, de 1993, eu fui convidada; eu pensei que era brincadeira, quando foi feito o convite, porque eu não sabia que existia a Academia Paulista de Psicologia. Foi uma surpresa para mim porque ela é muito pouco noticiada, é muito pouco divulgada. Eu pensei que era uma brincadeira pelo telefone que eu estava sendo convidada, que eu tinha sido votada e eleita para fazer parte da Academia Paulista de Psicologia. E, depois que passou o meu susto e a sensação da brincadeira, eu soube que realmente existe essa academia, é aqui em São Paulo, que ela tem 40 membros e nós somos imortais...

S: Mas são substituíveis. (risos)
M: Eu sou a Cadeira n° 11 que, inicialmente, era do Roger Bastide; ele morreu e cada um que morre, fica o patrono e aí vão se sucedendo os acadêmicos.

S: Mas essa cadeira agora vai ficar longamente com você. (risos)
M: (risos) Então eu faço parte, como imortal, da Academia Paulista de Psicologia que são 40 psicólogos da História da Psicologia. Pessoas que tiveram parte nesse processo, estão lá.

S: A sua grande produção de livros, os livros que você escreveu, foi, basicamente, depois que você se aposentou e particularmente na década de 90. A que se deve isso: você amadureceu muito as idéias, ou teve tempo para escrever aquilo tudo que você fez?
M: Também foi... As duas coisas. Muita gente antes dizia que eu tinha de escrever tudo isso: que eu tinha de escrever sobre Orientação Profissional, que eu tinha de escrever sobre Arte-terapia, que eu tinha de escrever sobre tudo isso. E eu achava que eu não tinha tempo de escrever, porque eu estava sempre tão engajada em atividades, sempre fui muito ativa, que ficava difícil parar para escrever. Mas, neste mesmo ano, nós pensamos que além do curso seria interessante lançar o livro de Psico-oncologia, exatamente aquelas aulas...

S: Em 93?!
M: 93, no mesmo ano: fui eleita para a Academia Paulista de Psicologia, voltei para a área universitária, para o Instituto Sedes Sapientiae, para dar o curso de Psico-oncologia. E o que aconteceu? Essa idéia de expandir a Psico-oncologia, nós vimos que, além do curso, a gente podia fazer do curso um livro. Eu tive a idéia, e coordenei o livro. O livro se chama Introdução à Psiconcologia, eu faço os capítulos introdutórios, coordenei, convidei aqueles professores que tinham dado as aulas, que era a equipe que estava montando o congresso, que seria em 94, então, o livro é o curso que foi dado no Sedes. E nesse ano, então, saiu o primeiro livro coordenado por mim que é o Introdução à Psiconcologia. Esse livro vendeu bem e vende bem até hoje porque é um manual de Psico-oncologia, porque não existia nada escrito nesse sentido, no Brasil.

S: E ele te animou a escrever os outros: Arte-terapia, ...?
M: Ele abriu uma possibilidade. Ele abriu um caminho. E os outros foram na base do: por que não?

S: Aí, o grupo vocacional...
M: Por que não, então por que não escrever minha experiência de Arte-terapia? Então convidei alguns colegas e fizemos esse livro da experiência de Arte-terapia.

S: Desses seis ou sete, eu fui em quatro, tomei muito vinho. (risos)
M: (risos) Foram sete já. Depois eu fiz o da Orientação Profissional, da minha tese, que eu adaptei para livro. Depois, um livro sobre dor porque, com esse trabalho na Psico-oncologia, eu acabei entrando na área de dor, me interessei muito pelo trabalho de dor, desenvolvi todo um trabalho com hipnoterapia ericksoniana em dor. Enfim, durante esses anos, eu trabalhei muito com livros. Eu fiz um capítulo num livro seu, que você coordenou.

S: Perspectivas psicodinâmicas em psiquiatria. Você escreveu sobre, justamente, Psico-oncologia, batido à máquina. (risos) Não foi em computador, foi à máquina. Sem um erro! Talvez a Annita encontrasse um, eu não encontrei. É verdade.
M: (risada) Eu só escrevo à mão, um amigo meu bateu à máquina para mim. Ele é sério, é um advogado. (risada)

S: E também foi nessa década, Magui, que você adquiriu experiência como uma conferencista internacional. Foi muito tranqüilo, ou foi muito difícil?
M: Não, não, todas essas coisas foram difíceis. Eu estou contando agora, com calma, porque elas já passaram.Todas essas inovações, todas essas entradas em coisas novas, sempre foram muito difíceis. O pioneirismo é muito difícil porque você tem de vencer preconceitos. Sempre houve muito preconceito: "- Ih! A Magui vive inventando moda, ela não se fixa em nada". Não era assim só bem visto não, era muito mal visto também. Eu era aquela que não seguia uma linha, eu não ficava certinha em alguma coisa, então, teve muita crítica nisso tudo, teve muito preconceito, teve muita dificuldade em todas essas situações. Essa de falar fora do Brasil foi bastante difícil. Foi o Dr. Gerald Epstein, que é psiquiatra norte-americano, do "Mont Sinai Hospital", de Nova Iorque, ele tem um livro muito importante, nessa linha de trabalhar com imagens mentais, que se chama?

S: As imagens que curam.
M: Exatamente. Um livro que foi traduzido há muitos anos aqui no Brasil e ele foi convidado para vir ao Brasil, para falar sobre o trabalho dele. E ele nos conheceu, conheceu a mim, e conheceu nosso trabalho de Psico-oncologia e ficou encantado porque nos Estados Unidos não se faz uma Psico-oncologia tão bem feita como a nossa. Por quê? Por que eles são mais frios, mais objetivos, mais cientistas e nós fazemos uma Psico-oncologia mais humanizada, mais brasileira, mais afetiva, mais espiritualizada. Então, realmente, eu acho que essas características brasileiras facilitam o contato com o paciente de câncer. Nós fazemos, realmente, uma Psico-oncologia muito eficiente, muito humanizada, a gente se torna uma parte muito importante na vida do paciente de câncer.

S: E, lá foi você, colonizar os Estados Unidos.
M: Ele queria isso, ele me ligou pedindo para que eu fosse falar lá nos Estados Unidos, em quatro hospitais, de Nova Iorque e mais uma reunião que ele faz lá, no consultório dele o que era Psico-oncologia no Brasil, como é que nós fazemos isso, e foi muito tenso, muito tenso. Primeiro que eu fui falar para médicos, em Nova Iorque, para americanos, muito pretensiosos que são os nova yorquinos, e que olham o psicólogo "para baixo" e além de olharem para baixo por ser psicólogo, olhavam para baixo por ser brasileira. (riso) Nós não temos assim fama de cientistas. Nós temos fama por outras coisas: carnaval, futebol, pelas mulheres bonitas, mas não como cientistas. Então o desafio foi muito grande. Eu sentia que eu era olhada com bastante crítica, foi um grande desafio estar falando em inglês, que por melhor que eu fale não é a minha língua, eu tinha muito medo de falar errado, de me fazerem alguma pergunta que eu não soubesse responder. Mas mesmo assim, enfrentei platéias grandes, me sai bem no fim. Eles faziam muitas perguntas, num dos hospitais eu falei durante três horas: a palestra durou uma hora e meia e eu fiquei mais uma hora e meia respondendo perguntas. Então realmente a coisa correu bem mas me custou uma doença física. Eu psico-somatizei o processo, eu cheguei doente ao Brasil, porque foi muito tenso, muito difícil tudo isso. Mas, enfim, nós temos um livro que está sendo traduzido lá, agora. O livro que se chama [Psico-oncologia]Resgatando o Viver , que foi feito pela Summus, aqui no Brasil, ele pediu licença para traduzir lá (para os autores) porque achou que refletia o que se faz em Psico-oncologia no Brasil. Esse é justamente um livro que dá uma idéia do que se faz em vários estados e não só aqui em São Paulo: o que se faz hoje na Bahia, o que se faz em Pernambuco, o que se faz em Goiás. Existem já serviços de Psico-oncologia em todos esses lugares. Então, ele quis traduzir, ele tem uma editora e está traduzindo o livro lá nos Estados Unidos.

S: E talvez você terá de ir lá, fazer umas palestras.
M: Quem sabe vai mais alguém da equipe agora. (risada)

S: Magui, diz a lenda, isso já foi escrito e corre por aí, de que Magui vem do parse que é uma língua persa antiga, e que significa maga. Se non é vero, é ben trovato, mas de onde vem Magui?
M: Magui foi assim. Eu nasci em casa, uma parteira, estavam presentes em casa: a minha mãe, meu avô, a parteira e o meu pai, meio afastadinho, porque estava muito nervoso. Mas, quando eu acabei de nascer, meu pai foi introduzido na sala e a minha mãe disse que eu iria me chamar Maria Margarida porque era uma promessa este nome, e ele disse que esse nome não tinha nada a ver com aquele bebezinho, porque era um nome enorme, pretensioso. E eu era um nenezinho muito pequenininho. E que ele ia me chamar então pelo diminutivo de Margarida, que era Maggie que em inglês é o diminutivo de Margareth que é Margarida.

S: E ele não sabia parse não? Então essa idéia do parse...
M: Ele tinha morado quatro anos nos Estados Unidos, ele queria morar o resto da vida, ele estava até se naturalizando americano; ele tinha uma influência da cultura americana e ele teve de voltar ao Brasil porque o pai dele faleceu e a mãe o chamou para voltar e logo depois ele começou a trabalhar aqui, conheceu a minha mãe, se casou e eu nasci. E nessa seqüência, ele tinha essa influência do americanismo, vamos dizer assim. Maggie pareceu a ele um diminutivo que fazia sentido para aquela criancinha e o Maggie virou imediatamente Magui porque as pessoas não sabiam dizer Maggie... e Magui ficou do dia que eu nasci até hoje. E eu acho que ele tinha toda a razão porque Magui é que combina comigo e não Maria Margarida (risada).

S: E quando você vai aos Estados Unidos, te chamam de Maggie ou não?
M: Não, Magui. Até lá... me chamam de Magui. Todos os americanos que me conhecem, que vem aqui, conhecem a Magui. Eles não sabem dessa história. Não sabem que a Magui vem da Maggie. Para eles eu sou Magui. A Magui, realmente, é o nome que ficou. Por alguma razão eu tenho cara de Magui mesmo.

S: Pela sua história a impressão que dá é que você está coroando com muito êxito todas as iniciativas que você teve, mas por essa mesma história, a gente imagina que deve estar em andamento uma nova viagem tua. Você já sabe para onde você vai ou não?
M: Nesse momento o que nós estamos fazendo é expandir o curso de Psico-oncologia pelo Brasil porque ele só existia aqui em São Paulo. No ano passado nós tivemos um convite para que ele existisse em Belo Horizonte, então ele foi para lá. Ele já está no segundo ano, em Belo Horizonte. Esse próximo sábado [(17/03/01)] ele começa no Rio de Janeiro. Então nós vamos começar um curso, de dois anos, de especialização em Psico-oncologia no Rio de Janeiro e ele já está sendo dado em Brasília também, desde o ano passado, e eu devo ir para lá no próximo fim-de-semana. Então eu acredito que nesse ano, eu vou estar circulando pelo Brasil, para fazer isso, para difundir o curso porque já existem serviços de Psico-oncologia aqui no Brasil, mas não existem cursos de especialização. E as pessoas estão carentes desse curso, porque é um curso de alto nível de especialização, que dá uma formação para as pessoas trabalharem com mais instrumental, com mais teoria, com mais conhecimento então nós fomos requisitados para fazer isso. Eu tenho a impressão que esse ano vai ser uma expansão de viagens por aqui, para poder fazer isso: para Belo Horizonte, para o Rio [de Janeiro] e Brasília, que já estão encomendadas. E possivelmente outros estados nos peçam para fazer isso também.

S: Magui, nós estamos praticamente encerrando, mas talvez fosse interessante você nos contar como foi para você participar desse "vídeo memória" e ter de repensar vários momentos da sua vida, vários episódios. Como foi essa experiência para você?
M: Olha, teve momentos difíceis e momentos fáceis. Os fáceis: é gostoso lembrar dessa história, não é ruim. Tem momentos difíceis, mas não tristes. A minha história profissional sempre foi uma história boa, de sucesso - como você falou - de prazer, de produção, de empenho. Então não é uma história de fracassos, de tristezas, de frustrações... E eu entrei numa área, onde o fato de ser mulher não trouxe nenhuma desvantagem, porque há áreas onde as mulheres tem desvantagens, ganham menos. Na minha área não, porque como professora universitária, o professor ganha tanto... ganha a mesma coisa, ganha mal. (risos)

S: (risos) Igualmente mal.
M:

Na verdade entrei numa área profissional onde as coisas correram bem, vamos dizer assim, na minha vida. Então, lembrar da área profissional, pensar nela, é agradável. Agora, o ruim é me expor. Não gosto, isso para mim é difícil. Eu gosto que apareça o meu trabalho, eu gosto que apareça o que eu faço, mas eu não gosto de eu aparecer, eu sou muito fechada com as minhas coisas. Eu sou muito fechada com a minha vida, com as minhas coisas. Eu tive de brigar um pouco comigo para aceitar de me expor, mas eu tive de aceitar que eu sou parte da história da psicologia. Que a história faz parte de mim e eu faço parte dela. Então, quando eu fui convidada pelo Conselho (CRP) para dar esse depoimento, da minha parte na história da psicologia, eu não pude me furtar, mas eu fiquei muito constrangida, foi muito difícil aceitar de falar para o público de mim. Não é fácil, existe uma timidez aí, de aparecer, de falar, enfim... Mas é isso. Esse foi o lado difícil.

Contar a história não é.

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