Psicologia no Ensino Médio:
reflexões em torno da formação
Ângela Soligo
Representante da Associação Brasileira de Ensino de Psicologia - ABEP
Vocês vão ouvir aqui um tom crítico. A mim coube analisar
a questão da Formação do Professor de Psicologia e não é possível
fazer essa análise sem indicar, sem analisar os entraves, os
atropelos no nosso processo de formação. Gostaria, no entanto,
de pontuar que esse tom crítico é um tom autocrítico.
Estes caminhos que temos trilhado são os caminhos que
nós temos construído, e somos todos, em certa medida, responsáveis
por eles. Por isso é tão importante refletirmos sobre
eles e pensarmos em alternativas, buscando conquistar um
espaço para a Psicologia no Ensino Médio.
Para contextualizar a discussão sobre a formação, vou
retomar rapidamente a questão "Que Psicologia é essa?".
Essa é uma questão que nos fazem com frequência quando
falamos de Psicologia para o Ensino Médio. Se nós olharmos
historicamente, veremos que no final do século XIX e início do
século XX, a Psicologia chega ao Brasil vinculada à Educação
em uma perspectiva normativa, indicando os parâmetros de
desenvolvimento, de aprendizagem. Entra como ferramenta
de solução de problemas da escola.
Com relação a essa forma de fazer Psicologia no campo da
Educação, nós recebemos muitas críticas vindas do interior
da escola, dos estudiosos da Educação e de nós mesmos, da
Psicologia em construção. Ao longo dos anos e como fruto das
nossas atuações, reflexões e críticas, fomos transformando
nossos olhares e perspectivas de atuação.
Nos tempos atuais, quando nós falamos do sujeito psicológico,
falamos do sujeito histórico, de um sujeito que se constrói
inserido em um contexto social, cultural, político. Falamos de
uma Psicologia da compreensão, da atenção às diferenças,
da escola como espaço das relações; não da escola em que
recortamos o sujeito para entendê-lo, mas da escola em que o
sujeito se insere no campo do currículo, do sistema e de todas
as dinâmicas sociais que envolvem a caracterizam.
Quando eu falo, portanto, da Psicologia no Ensino Médio,
é nessa Psicologia que estou pensando.
Fazendo agora um rápido resgate histórico do ensino da
Psicologia no Ensino Médio no Brasil, veremos que nós não
falamos de uma novidade.
Desde 1850, com a criação do Colégio Pedro II, a Psicologia
passou a figurar como conteúdo de formação dos jovens. Em
1890, ela começa a compor o currículo das Escolas Normais,
das escolas de formação de professor de Nível Médio, espaço
de formação em que se mantém até hoje.
No Ensino Médio Regular, ela foi conteúdo obrigatório
a partir da Reforma Capanema de 1942. Em 1961, tornou-se
conteúdo optativo, mantendo-se assim presente como possibilidade
de formação da juventude. A partir da Lei de Diretrizes
e Bases da Educação Nacional de 1971, conhecida como a LDB
da Ditadura, a Psicologia é retirada das diretrizes de formação
da juventude, assim como a Filosofia e a Sociologia. O campo
das Ciências Humanas fica reduzido a História e Geografia
e a um conjunto disciplinar conhecido como Organização
Social e Política do Brasil.
Mais de 20 anos depois, promulga-se a LDB de 1996. Mas
por que demorou tanto tempo? De 1971 aos anos 80, tivemos
um longo processo de ditadura e, a partir de meados dos anos
80, houve um processo de retomada do estado democrático.
Uma das consequências dessa retomada foi a Constituição
de 1988 e posteriormente a LDB de 1996.
Com a LDB de 96, as Humanidades voltam para a formação
do jovem no Ensino Médio; a Filosofia e a Sociologia
retornam como disciplinas. A Psicologia não aparece como
disciplina, mas como conteúdo transversal, nos Parâmetros
Curriculares para o Ensino Médio, e assim continua.
No Estado de São Paulo, nós tivemos, a partir dos anos
80, três momentos importantes: em 1986, com a inclusão da
Psicologia nas Diretrizes Curriculares para o Ensino Médio
do Estado de São Paulo, como disciplina obrigatória, que
envolveu debates e trabalho conjunto envolvendo a CENP (Coordenadoria
de Estudos e Normas Pedagógicas da Secretaria
de Educação do Estado de São Paulo), o CRP e o Sindicato dos
Psicólogos e resultou na produção de conteúdos que até hoje
são referência para o ensino de Psicologia no nível médio.
Foi um período bastante fértil aqui em São Paulo, com vários
concursos para professores de Psicologia.
Em 1986, com a inclusão
da Psicologia nas Diretrizes
Curriculares para o Ensino Médio
do Estado de São Paulo, como
disciplina obrigatória, que envolveu
debates e trabalho conjunto
envolvendo a CENP (Coordenadoria
de Estudos e Normas Pedagógicas
da Secretaria de Educação do
Estado de São Paulo), o CRP e o
Sindicato dos Psicólogos e resultou
na produção de conteúdos que até
hoje são referência para o ensino de
Psicologia no nível médio.
No entanto, nos anos 90, a Psicologia passa a constar como
disciplina eletiva, núcleo diversificado. Há iniciativas, nesse
momento, de reinserção como disciplina obrigatória, novamente
envolvendo as entidades da Psicologia e a CENP, mas
isso não chega a acontecer. Nos anos 2000, há nova tentativa
de reinserção da Psicologia como disciplina obrigatória, e o
que acontece? Novas discussões, mobilização das entidades,
porém em 2007 a Psicologia é totalmente retirada da formação
dos jovens do Ensino Médio no Estado de São Paulo; não
tendo sequer espaço no núcleo diversificado
Atualmente, Sociologia e Filosofia integram as disciplinas
obrigatórias do Ensino Médio em todo o País, e a Psicologia
não. O Ensino Médio regular mantém o formato disciplinar,
embora haja uma série de questionamentos sobre esse
formato. A Psicologia consta nas Orientações Curriculares
Nacionais e se mantém como disciplina obrigatória em cursos
técnicos e profissionalizantes. Ou seja, ela está em Nível
Médio, nos cursos profissionalizantes e técnicos.
O MEC (Ministério da Educação) lança um programa
piloto denominado Ensino Médio Inovador, com formato interdisciplinar,
que avança em relação ao modelo disciplinar,
e faz um convite à ABEP para participar dessa discussão.
Mas, enfim, por que temos trabalhado na direção de inserir
a Psicologia no Nível Médio? Porque os objetivos hoje
colocados para o Nível Médio pressupõem a formação de um
cidadão crítico, transformador, consciente do seu contexto,
dos seus direitos, das suas possibilidades.
Nos parâmetros curriculares, faz-se menção a dois processos
importantes: a desnaturalização e o estranhamento, ou
seja, formar um cidadão que seja capaz de se fazer perguntas,
de questionar, de pensar sobre a situação atual, de não ver as
representações de mundo contemporâneas como naturais,
como imutáveis.
Nesta direção, nós acreditamos que as Ciências Humanas,
de um modo geral, e a Psicologia, de um modo
específico, têm muito a contribuir. A Psicologia, na medida
em que busca compreender as subjetividades na perspectiva
da cultura, da sociedade, tem desenvolvido conteúdos,
conhecimentos e estratégias de ensino que vão contribuir
com esta formação.
Mas, e por que como disciplina? Essa é uma questão que nos
colocam sempre: "Mas por que vocês estão falando de disciplina
se hoje já se fala em interdisciplinaridade?". Bem, apesar os esforços
e discursos, o Ensino Médio continua disciplinar, e nesta
perspectiva o que nós ponderamos é: como trabalhar os conteúdos
da Psicologia na ausência de um sujeito, um profissional que
estudou a Psicologia e que possa trabalhar em uma perspectiva
de conhecimento, da pesquisa, e não do senso comum?
Não adianta figurarmos como conteúdo transversal
porque neste lugar não vemos trabalhada a Psicologia, mas
vemos trabalhadas as representações do que é o Psicológico
a partir da experiência pessoal dos professores, portanto, a
partir do senso comum.
Entrando agora na questão da formação, retomo os modelos
de formação do professor de Psicologia, os modelos de
licenciaturas que foram aparecendo no País desde a primeira
proposta, desde a primeira formulação, tentando identificar
que professor é esse e em que situação encontra-se agora.
Por que temos trabalhado na
direção de inserir a Psicologia no
Nível Médio? Porque os objetivos
hoje colocados para o Nível Médio
pressupõem a formação de um
cidadão crítico, transformador,
consciente do seu contexto, dos seus
direitos, das suas possibilidades.
A primeira proposta surgiu em 1932, no Ministério de Educação
e Saúde, e nessa proposta já se evidencia a Educação
como um campo de atuação da Psicologia, mas ainda não se
fala em licenciatura.
Em 1953, um novo projeto é formulado em um Simpósio
de Faculdades de Filosofia. Já se fala em licenciatura em
Psicologia e nas perspectivas das disciplinas pedagógicas: a
didática, a poética de ensino, estrutura e funcionamento do
ensino, mais a Psicologia Educacional.
Em 1958, o Projeto de Lei 3825 traz uma proposta de regulamentação
da profissão. Fala em bacharelado e licenciatura
compondo a profissão de psicólogo, a licenciatura vinculada
às disciplinas pedagógicas, à Estatística, Filosofia e Lógica.
O substitutivo de 1959 mantém essa formulação e fala nas
atuações clínica, escolar e do trabalho.
Em 1962, temos no dia 27 de agosto a promulgação da
regulamentação da profissão de psicólogo. Nesta regulamentação,
três dimensões da atuação do psicólogo estão impostas:
o bacharelado vinculado à pesquisa; a licenciatura ligada
ao ensino de Psicologia e a formação do psicólogo atrelada
à atuação do profissional psicólogo. Esta proposta traz uma
perspectiva ampla de formação, em que ensinar a Psicologia
é uma tarefa do psicólogo.
Na licenciatura o que se propõe são as disciplinas pedagógicas.
Muitos de nós, que fizemos licenciatura, estudamos
Estrutura de Funcionamento de Ensino, Didática, e realizamos
Prática de Ensino.
A Psicologia, na medida em
que busca compreender as
subjetividades na perspectiva
da cultura, da sociedade,
tem desenvolvido conteúdos,
conhecimentos e estratégias de
ensino que vão contribuir com esta
formação.
De 1962 a 1995, vejam quanto tempo se passou, vigorou
essa regulamentação; havia discussões sobre formação,
mas nenhuma ação mais direcionada à transformação dessa
regulamentação.
Em 1995, a Comissão de Especialistas do MEC, que cuida
da questão do ensino da Psicologia, apresenta um documentoreflexão
sobre a formação em Psicologia. Nesse documento,
a licenciatura ainda aparece vinculada especificamente às
disciplinas pedagógicas. Formar professor significa ensinar
legislação e metodologia e fazê-lo praticar.
Nesta regulamentação, três
dimensões da atuação do psicólogo
estão impostas: o bacharelado
vinculado à pesquisa, a licenciatura
ligada ao ensino de Psicologia e a
formação do psicólogo atrelada à
atuação do profissional psicólogo.
Esta proposta traz uma perspectiva
ampla de formação, em que ensinar
a Psicologia é uma tarefa do
psicólogo.
A educação, nesse documento, aparece reduzida. Fala-se
de outras dimensões da atuação do psicólogo e pouco do
campo de educação.
Em 1996, o documento do II Congresso Nacional de
Psicologia identifica questões importantes para atuação da
Psicologia naquele momento. Trata da questão da avaliação
psicológica, da expansão incontrolada dos cursos de
Psicologia, dos estágios, das práticas alternativas, mas não
fala do ensino de Psicologia; nenhuma menção há naquele
documento sobre a licenciatura. No mesmo ano, a Comissão
de Especialistas do MEC produz uma reflexão em que
se mostra preocupada com o viés clínico da formação em
Psicologia.
Em 1997, o MEC convoca as instituições de ensino para
apresentar propostas para as Diretrizes Curriculares de
Formação em Psicologia. Em 1999 sai a primeira versão
das Diretrizes. Sabemos que essas diretrizes foram palco
de disputas políticas e de discussões acadêmicas. Sabemos
que as diretrizes de qualquer curso expressam contradições
a respeito da compreensão de profissão, da compreensão de
mundo, e as nossas diretrizes expressam isso também.
Na primeira versão propôs-se um curso único de psicólogo,
envolvendo atuação profissional, pesquisa e ensino.
Portanto, formar o psicólogo significava formar o profissional
que atua, que pesquisa e que ensina.
No entanto, essa versão aponta para a possibilidade de diferentes
diplomas: bacharel, licenciado e psicólogo. Surge a ideia
das ênfases, portanto não mais áreas estanques e tradicionais,
mas ênfases que podem ser definidas, escolhidas por cada instituição
formadora, desde que não apenas uma. Incorpora-se
nessa proposta o discurso das competências, habilidades.
Revela-se aí uma visão de currículo, de formação colocada
nacionalmente, em que, entre as competências do licenciado, mencionam-se os conhecimentos do desenvolvimento e
aprendizagem, planejamento, execução e avaliação.
Na segunda versão destacam-se as propostas para a licenciatura.
Na minha opinião, esta é a versão que traz uma
compreensão mais ampla do campo de atuação do professor
e de possibilidades da Psicologia no ensino.
A licenciatura vem atrelada às temáticas da Educação
Infantil, do Ensino Fundamental e Médio, da Educação
Especial e da Educação Profissional. Também se enfatiza a
necessidade do conhecimento do Sistema Educativo, da escola
como um lugar de diversidade, como lugar de expressão de
diferentes culturas. O planejamento não voltado a um modelo
simplesmente, mas vinculado ao tipo de aluno, à cultura do
aluno, à avaliação.
Nesta segunda versão, postula-se a necessidade de articulação
com as Diretrizes de Formação de Professores que haviam
sido promulgadas. Pela primeira vez, revela-se uma concepção
de que o professor de Psicologia deveria ter os conhecimentos específicos
da sua área, mas também deveria ter os conhecimentos
relativos à formação de professores de maneira geral. O professor
de Psicologia deveria ter um perfil de professor e, para isso,
todas essas questões e conhecimentos seriam importantes.
Formar o psicólogo significava
formar o profissional que atua, que
pesquisa e que ensina.
Em 2001, a Associação Brasileira de Ensino de Psicologia,
o Conselho Federal de Psicologia e a Comissão Nacional de
Ensino de Psicologia apresentam ao Ministério da Educação
um documento com reflexões e questionamentos relativos
proposta de diretrizes. Indicam preocupações com relação
ao possível esfacelamento da formação, caso fosse centrada
nas ênfases, e com a dissociação entre atuação do psicólogo
e a pesquisa, o que são pontos extremamente importantes
e relevantes. No entanto, essa mesma preocupação não se
expressa em relação ao ensino de Psicologia.
Em 2002, um documento do FENPB (Fórum das Entidades
Nacionais da Psicologia Brasileira) pontua a dimensão pedagógica,
porém, de forma mais restrita do que aquela expressa na
segunda versão. O parecer do Conselho Nacional de Educação
mantém a formulação da segunda versão e a presença das
dimensões da pesquisa, do ensino e da atuação profissional.
Em 2004, são aprovadas as Diretrizes Curriculares para a
Formação em Psicologia, na perspectiva de atuação, pesquisa
e ensino; porém, as expressões referentes à Educação são:
diagnosticar, planejar e avaliar. Na minha opinião, há grande
perda em relação à licenciatura. Nas Diretrizes, a licenciatura
seria contemplada em projeto complementar, articulada às
diretrizes de formação do professor.
Defender a Psicologia no Ensino
Médio passa pela tentativa de
se resgatar nas diretrizes e nos
currículos a licenciatura, a formação
do professor de Psicologia; passa
pela articulação dos conteúdos
da Psicologia com as dimensões
educativas em toda a sua amplitude:
política, econômica, social, cultural.
Este é um momento critico e sério porque a licenciatura e a
formação do professor são colocadas na periferia da formação,
à parte, de lado. Essa proposição trouxe consequências imediatas
e muito importantes para a formação em Psicologia.
A partir das diretrizes de 2004, muitos cursos que possuíam
licenciatura extinguiram de vez a idéia de ter uma essa
formação. Hoje, temos praticamente metade dos cursos de
licenciatura que tínhamos antes de 2004.
Da mesma forma, perdeu-se na formação do psicólogo o
espaço da formação política, cultural e histórica das questões
educacionais, seja para a atuação do psicólogo escolar, seja
para a atuação do professor.
Portanto, defender a Psicologia no Ensino Médio passa
pela tentativa de se resgatar nas diretrizes e nos currículos a
licenciatura, a formação do professor de Psicologia; passa pela
articulação dos conteúdos da Psicologia com as dimensões
educativas em toda a sua amplitude: política, econômica,
social, cultural.
Este resgate não favorece somente a formação do professor,
mas também a atuação do psicólogo nos contextos
escolares e em outros contextos.
O debate, em torno da licenciatura atende a um duplo
propósito: ele fortalece a luta pela Psicologia no Ensino Médio,
tomada como um conhecimento importante, necessário à
formação de um aluno crítico, criativo e atuante. Ele problematiza
a formação do psicólogo, na perspectiva da superação
do viés clínico e da inserção da Psicologia no campo da maior
política pública deste país, que é a educação.
Ao encerrar esta conversa, gostaria de dizer que a graúna
que aparece nos slides de minha apresentação tem um sentido
muito importante para a Psicologia. Fomos autorizados
a usar o símbolo da graúna, quando decidimos intensificar
a luta pela Psicologia no Ensino Médio. A graúna é um personagem
do Henfil, que foi um cartunista que lutou contra a
Ditadura; representa a resistência, o espírito crítico do jovem.
É isto que eu espero que a Psicologia consiga construir nos
seus próximos caminhos.
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